pode conter altas doses de humor e ironia mordaz
Ninguém lê mais. Ou nós que escrevemos mal?
Os paradigmas literários e critérios qualitativos mudaram tanto nos últimos tempos que é fácil dizer isso sem interrogação. Aquele livro que um casto número de pessoas poderia dizer, com certo pedantismo, que é o novo Grande Sertão: Veredas contemporâneo pode não agradar o novo público leitor que adora velhos temas da literatura do jeito mais batido, copiado em si mesmo e clichê possível.
Mas, sério, tentando não soar uma reaça de gerações (um conceito por si só esteticamente reaça e estadunidense) ao dizer o que quero dizer, tudo fica bem claro: Todo mundo quer ler Itamar(es) que se pautam em narrativas identitárias sem coesão interna histórica ou psicológica social, mas ninguém quer ler o que um autor indie independente tem a dizer sobre os mesmos temas já debatidos desde 1930.
O Rio de Janeiro está sempre lindo, com a praia limpa e Tom Jobim tocando em novelas, as favelas bem escondidas na sombra dos olhos das empregadas sem falas, funções ou vontades próprias das Helenas, as quase mães-subservientes de Benedito Ruy Barbosa, com tramas refeitas sem uma mudança de fio sequer. Ou então, o Rio criminoso e sujo dos filmes de tráfico e violência. Mas ninguém quer falar (e quando digo falar leia debater), ou ler de verdade um Geovani Martins sem escorregar na opinião levemente xenofóbica de que o sudeste já teve espaço demais.
Quando se fala “ler de verdade” se entra num campo perigoso do subtexto.
O que seria ler de verdade? Como se faz isso? Isso existe? Quem consegue?
Quem DECIDE o que é ler de verdade?
Mas acho que, para não ir além do tema que trago sobre NINGUÉM LER, basta dizer que as pessoas querem se deter em se identificar com a leitura como um espelho, ver a si mesmo na narrativa (normalmente em primeira pessoa) em situações que gostaria de estar vivendo: fantasias eróticas com elfos, morenos nerds com passados tristes, campeonatos de beisebol com um musculoso, paixão avassaladora pós bullying, um encontro casual com um CEO que mudará sua vida. Ainda vou falar sobre esse tema em um texto próprio, que vivo apagando e refazendo.
Elas querem ver as pautas que estão em alta no coração deles e rechaçam aquilo que soa brega, cringe, ultrapassado. Hoje são as fantasias, mas já foram as distopias e os livros de adolescentes que morrem (cof, cof, John Green).
Hoje os adolescentes tem uma gama de livros com selos de grandes editoras que tratam de tramas LGBT, mas pra isso ser possível a luta política estava fora da literatura também (mas eles não leem e não querem saber sobre) e principalmente na literatura antiga. Não teríamos metade das narrativas cheias de terminologias urbanas do cotidiano, orais, se não fosse, por exemplo, por movimentações do Mário de Andrade, ou o sertão de Graciliano Ramos. Ou autores queer como Ursula Le Guin, Oscar Wilde, Yourcenar.
O jovem hoje em dia chama Macunaíma de estuprador, Mário de racista e Graciliano de xenofóbico e caricato, tudo sem estudo, tirado do tiktok da thread do Twitter sem uma vontade de debate em sala de aula, em um blog. Mas querem ler o pastiche arado de tudo isso, ou a releitura da releitura da releitura de O retrato de Dorian Gray, livro que acham monótono, muito descritivo e chato.
Ninguém quer ler o manifesto bissexual ou entender a luta pela liberdade sexual do povo LGBT, eles querem nichos: o nicho da galera que sexualiza todas as profissões, religiões e temas possíveis e o nicho higienizado onde até beijos mais molhados são considerados tabus. Querem pular cenas de sexo, pois acham “cringe” ou “desnecessárias para o andamento da trama”. Se formos entrar nesse campo, entraremos no debate se há algo necessário e útil pro andamento de algo em alguma arte. Se alguém achar que sim, me avise.
Ficam defendendo adaptações completamente desfiguradas, ou remakes dos remakes, reiteram seu nojo sobre um Nelson Rodrigues, acham temas específicos “pornografia da violência” e cancelam imediatamente os seus autores por supostamente se identificarem com o que escrevem, já que pra eles autor = obra.
Pior! Agora anda a onda de que você só pode escrever sobre determinada coisa se a viver. Mulheres cis não podem escrever sobre transgêneros, homens não podem escrever sobre mulheres grávidas e ninguém mais vai escrever sobre elfos e dragões, afinal, ninguém é elfo e nem dragão (eu acho).
Nunca entram no debate da qualidade da escrita, a menos que seja sobre como as cenas de sexo são irreais. Na ficção, não basta ter utilidade, tem que ser padrão e nada corpóreo de fato. Mas tudo bem sempre defender o mesmo livro com tons de cabelos e títulos diferentes da Ali Hazelwood porque a justificativa é, toda vez que sugerem outra leitura: “quero ler algo confortável, sem surpresas, que eu já conheço, com a mesma linguagem, escrita, clichê, água com açúcar, pra passar o tempo.”
Ler de verdade não é necessariamente se identificar, se edificar, concordar com o autor ou a obra, aprender algo ou até mesmo gostar. Ler de verdade é explorar campos além dos autores famosos que tem dinheiro injetado pra estarem sempre na lista de mais lidos, explorar desconfortos em temas, tentar entender porque determinada frase te desagrada ou te emociona, seja semanticamente, morfologicamente, de maneira pessoal.
É fazer uma resenha critica e não modular a sinopse com outras palavras, é ler as descrições sem pular só para os diálogos (sim, tem quem o faça, a “leitura dinâmica”), é arriscar ler outros gêneros que não variações de mafioso sarado, é saber apoiar autores de TODOS os lugares do país, com ou sem selo de editora, com ou sem tropos definidos por posts pastéis de Instagram. É ler por vontade própria e não por reels no TikTok ou pra bater meta de 250 livros no ano.
É ler por ALTERIDADE. Se colocar no lugar do outro, seja uma minoria ou não e não para que o personagem se encaixe em quem você é. O papel da literatura não é te agradar e entendo que num mundo cada vez mais cruel e cansativo tudo que queiramos é um agrado em palavras, mas nem sempre o agrado vai vir com afago.
Você pode ler esses livros, literatura de entretenimento sempre existiu e para todos os gêneros (não vamos resumir só ao campo da literatura para mulheres, já que homens gastam rios de dinheiro com livros de feitiço e bonequinhos mágicos que seguem a mesma fórmula). Só que um leitor, aquele que não lê qualquer coisa pra dizer que leu 900 livros no ano, quer mais do que a literatura que conforta, que faz rir e “nada diz no fim do dia” e é isso que devemos procurar em nós mesmos.
Pode vir com autofagia, engolir a si mesmo, engolir você e tudo que você acreditava, sabia, sentia ou achava que. E ninguém quer ler se não pra ver a si, já que tá todo mundo tão cansado e tão sozinho, se nichando, se colocando em grupos de rótulos até todo mundo ser de tudo de novo.
Ninguém quer ler o amigo de São Paulo, os autores em antologias do Norte, já que “contos são curtos e mal desenvolvidos e fico querendo mais”, sem entender qual a estrutura básica de um conto, como funcionam as diferentes ESTRUTURAS narrativas e suas “regras de gênero”, sem entender o que se adequa pra você, criticando a base da pessoalidade: “não foi o número de páginas que eu queria, não falou de algo que eu gosto, me engatilhou em algo que o autor não poderia saber, então não gostei”.
Não gosto do tema da maternidade em diversos aspectos e mesmo assim adorei “Como se fosse um monstro”, da Fabiane Guimarães por retratar com seriedade o tema da autonomia de corpo e a rejeição da maternidade de maneira séria e sem delírios pautados.
O livro não vai te pedir desculpas, o conto não vai automaticamente virar um romance. Quem lê tem que saber o que quer ler, entender pelo menos um pouco o que já leu e continuar procurando o que ler. Tentativas. Não dá pra ler só livros perfeitos cinco estrelas. Não dá pra se chamar de leitor pelo prazer “titular”. Não precisa começar com Ilíada. Nem com um Ulisses. Você nem precisa ler os “Super Mega Clássicos do Cânone” no começo se não quiser. Tem versões adaptadas deles, também. Tem emulações.
Não somos nada a mais que ninguém por ler X clássicos no ano ou 400 ebooks hot em um mês.
Mas as pessoas PRECISAM voltar a ler de verdade, entender: o que gosto nessa narrativa de CEO? O que me agrada na escrita erótica dessa autora, que nessa outra me desagrada e sinto ser genérica? O gênero tem feito tanto sucesso? Que crítica social, psicológica, histórica, ou de gênero podemos tirar disso ou não?
Não tô pedindo pra ninguém fazer mestrado no nicho dos 50 tons de cinza, mas tentar refletir um pouco dentro do que se lê, se isso for fazer as pessoas lerem. Ninguém mais lê algo por ler, por interesse, vira sempre uma obrigação de trabalho, de hobbye obrigatório, de pressão virtual, de trending topics, cobrança da faculdade, da meta de maratona literária. Ninguém mais lê jornal, só dá RT sem verificar. Ninguém mais termina de ler as News alheia. Ninguém mais lê um Zé Ninguém como faziam antigamente pegando qualquer livro e abrindo sem saber de quem era.
Drummond e Guimarães poderiam ser Zé Ninguéns. Conceição Evaristo e Clarice também. As pessoas LERAM ELES.
As pessoas deram chances, não esperaram ser agradadas. Não esperaram outros lerem. Tiraram algo disso.
Macunaíma não vai te morder, nenhum fiscal vai arrancar o livro da sua mão e tirar foto de você pra te cancelar na internet por ler O beijo no Asfalto, ninguém realmente cancelou Monteiro Lobato pras crianças, apenas utilizam do livro pra LER DE VERDADE o contexto social-histórico da época e ensinar com consciência aquilo que não cabe mais.
Ninguém mais lê teoria, mas todo mundo virou crítico literário sem ler. Ninguém mais lê uma poesia se não tiver TAB a cada quatro palavras, ninguém pensa em estrutura de rima se não for ABAB. Ninguém mais quer ler um clássico pra entender como o que lemos hoje teve espaço.
Nunca querem cancelar Harry Potter nos espaços físicos, mas no virtual todo mundo jura já ter superado. No fim leêm escondido as mesmas e mesmas coisas, com outros títulos e capas de luxo. Nunca leram outros autores que não replicam conceitos americanizados de fantasia. Nunca tentaram ler o Oriente se não por recomendações de bandas.
Escrevemos mal todos aqui no Substack?
Escrevemos mal, todos os autores independentes de verdade, que não injetam uma grana brava nos rankings da Amazon ou dão brindes escondidos por avaliações 5 estrelas?
Escrevem mal todos aqueles que gratuitamente, pagando pra trabalhar (Ops, escrita é um trabalho!), tentam resenhar e são rechaçados por criticar de verdade, com humor mordaz?
Escrevem mal todos que querem trazer outros tipos de contextos significativos dentro de um gênero, um pouco mais de profundidade social no CEO e na gay divertida?
Escreve mal quem escreve muita descrição, muito diálogo? Livros de 600 páginas são todos enrolados? Contos deviam parar de existir e serem maiores? Livros de autores nacionais são todos ruins? Ou as pessoas que, por não lerem, arranjam todas as desculpas despejadas nesse texto?
Não acredito que todo mundo escreva mal aqui. Nem que leiam “mal”.
Já li textos de emocionar, chorar, salvar, reler, fiz amigos e tenho trocas na comunidade. Coisas que levo pra vida. Tive tantas trocas, guardo tantas leituras, volto em tantos textos…
Também não acho que todo mundo que se diz autor escreva bem. Tem muita gente querendo capitalizar hobby que aprendeu a estimular semana passada sem entender que nem tudo que fazemos deve ser capitalizado. Tudo bem só escrever por prazer, pra aprender algo, para refletir, para encontrar a si mesmo, o outro, para se incomodar.
Vale pra leitura. Sua leitura não deve ser capitalizada, você não deve fazer esperando profissão, utilidade, mérito, recompensa, lucro, views, ascensão social ou pertencimento em um grupo. Ninguém ganha nada supostamente material lendo, mas todo mundo que começa, gosta por gostar e não quer mais parar.
Foi só um título click-bait e se você chegou até aqui, até já imaginava. Você leu, você leu tudo. Até que sim, existe gente que lê. Ninguém é muita gente mesmo.
P.S:
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no mundo imediatista em que vivemos, o consumo tem que ser rápido e sem reflexão, com aquele viés de confirmação do que já sabemos e pensamos. nada de fazer pensar ou provocar, porque isso exige tempo, e não temos tempo a perder. precisamos pular rápido de like em like, compartilhar rapidamente aquela frase bonita que vai gerar engajamento.
Graciliano é meu autor favorito BR e conterrâneo aqui de Alagoas, mas há um bom tempo percebi com quem é válido conversar sobre ele e com quem não é. São muitas opiniões construídas pela imediaticidade, o F.O.M.O. chegou na literatura, são muitas informações despejadas sem contexto por pessoas que tiveram um contato superficial com algo (vide a polêmica recente sobre leitura dinâmica na ficção). Em sua maioria são jovens que vão se chocar ainda quando, daqui a quinze anos, seus artistas favoritos (hoje atuais) estiverem sendo cancelados por não passarem mais na checklist do que é aceitável. Não se trata de defender clássicos apenas por defender, ou de não se importar com atitudes deploráveis de autores famosos. O que achamos passível de crítica, criticamos; principalmente quando o que consideramos errado está presente por todo o texto. O problema está em não apenas emitir opinião sem estudo como também a tentativa de influenciar o público como validação.