Fazer amigos na fase adulta é difícil. Isso é um fato. Falo como alguém que entrou nessa fase faz pouco tempo. Mas a realidade é dura quando você precisa cortar relações, seja por trabalho, fim de ciclos (escola, faculdade), mudança de cidade, orientação terapêutica, libertação própria ou não conseguir aguentar mais determinadas situações. Nem todo sapo deve ser engolido, alguns só devem ser jogados no brejo para hibernar no lamaçal em toda eternidade. Longe de você.
Tirando que é difícil fazer amigos por tudo isso, temos os fatores de: todo mundo é realmente mais ocupado na vida adulta e as personalidades já estão quase que completamente formadas. Mas isso tudo é mesmo o suficiente para nem tentar?
Não vou culpar quem NÃO consegue fazer amigos. Eu sou uma dessas pessoas. Pós-pandemia, minha extroversão foi engolida por uma ansiedade iminente de locais com mais de vinte pessoas interagindo, transporte público lotado e festas até a madrugada, onde minha bateria social era baixíssima, devido ao transtorno. Tudo isso espelhado em uma timidez envergonhada que até eu sei que é uma máscara para me proteger de dar com a língua nos dentes e me culpar depois por ter “falado demais”. É difícil fazer amigos na faculdade. Tirando os momentos em que estou chata, com sono, fome e dor, saibam que eu me esforço. Esse não é um texto digitado diretamente da Coitadolândia.
Mas toda moeda tem dois lados, fato clichê. Sim, tem pessoas solitárias e sem amigos porque são um pé no saco. São chatas pra caralho e grandessíssimas filhas da puta. Também tem aquelas que rotacionam amigos porque, por algum motivo, ninguém fica tempo o suficiente para contar história. A pessoa sempre é abandonada e, visto a exposição atual nas redes sociais, as pessoas não querem se aproximar o suficiente para saber o porquê, mas ela sabem que algo ocorre.
Saindo dessa estatística talvez média (tirada diretamente do DATACU) temos pessoas solitárias tentando se encaixar. Pessoas que por algum motivo não se encaixavam no antigo local e estão esperando uma oportunidade. Pessoas que deram uma guinada na vida. Pessoas que, na verdade, só estão esperando a atenção dos amigos de sempre. Porque, sim, é necessário dar atenção para os amigos. Sim, são relações que requerem manutenção, como qualquer outra. Não, não romantizem “relações de baixa manutenção" como mais saudáveis como forma de mascarar a falta de compromisso e de responsabilidade afetiva de vocês (essas palavras já estão manjadas, mas é o que me basta). Ninguém vive sozinho, isso é mentira. É um papo que vi em vários lugares tentando prezar pelas relações: você nasceu de alguém, foi alimentado, trocado, limpo. Fez amigos, foi ensinado, aprendeu a rir, a dançar, caiu, foi cuidado.
Depois que esse termo de baixa manutenção se popularizou como algo “Ok” nas vidas cansativas das “chapadinhas de endorfina”, todo mundo passou a não ligar para nada e para ninguém. Se você cobrar é carente, chato, visto até como desocupado ou disponível demais.
Estive pensando nisso desde que comecei a ver, de semana em semana, o quão recorrente se tornou deixar pessoas sozinhas em festas de aniversário, sumir sem responder mensagem, passar meses sem mandar um oi.
Você é realmente tão ocupado assim?
Ou você se faz parecer porque há uma idealização no excesso de trabalho e romantização da precarização da saúde em nome do “ganhar a vida”? Não há tempo para si, não há tempo para lazer, não há tempo para o ócio, logo, não há tempo para amigos. É normal que amigos fiquem de escanteio por um tempo quando se começa a estabelecer um novo relacionamento, trabalho ou estudo. E não estou falando de casos onde o namorado é um desquerido pelo resto de grupo de amigos, ou a pessoa não consegue sair sem o parceiro. Como dito, a relação requer manutenção e isso também exige manutenção do lado que está saindo do status quo da amizade, portanto, é uma relação de via de mão dupla.
Saindo do escopo da amizade, me peguei irritada com um tweet de uma menina que chamou 30 pessoas para irem ao bar no aniversário dela e ninguém foi. Talvez seja mais um “bait”, mas foi aval para dar voz a um incômodo pessoal meu que, na verdade, é o incômodo de muita gente. As questões que trouxeram da menina saíram do escape dela. Também do escape do bom-senso. Sim, ninguém conhece mais que 100 pessoas. Não se pode dizer que se tem coleguismo com mais de 40. Nem que conheça um pouco mais do que 15 ou 20. Talvez descontando a família, se ela for amigável, dá para dizer que tem bons amigos entre 5 a 10. Mas amigos para se contar não são aqueles que cabem nos dedos da mão. Os dedos da mão são muitos. Esses amigos com quem dá para contar são como UM pé de uma Ema.
Talvez nem todos os dedos do pé da Ema, talvez um e meio.
A menina, desabafando no antro sociológico proxionório1 que é o Twitter, achou que lá seria acolhida porque passou uma das datas pessoais mais importantes, onde você deveria se sentir especial e feliz – sou defensora ferrenha do aniversário e de fazer disso uma magia extrema mesmo que seja egoísta, melancólico ou chato para os outros. –, mas recebeu conselhos de não chamar as pessoas para festas, bares ou restaurantes se, além delas terem que levar presentes, tiverem que gastar.
Spoiler: As pessoas que reclamam são as mesmas que não levam presente. Não é uma obrigação, mas é uma constatação curiosa.
Ou seja, as pessoas perderam a vergonha de dizer que querem comer às custas de amigos supostamente queridos, beber, rir, não deixar sequer uma lembrança material de que esteve lá ou gostou da festa ou acha a pessoa querida e ir embora. As pessoas perderam a vergonha de dizer que não se importam. Banalizaram a relação de mão dupla, porque as mesmas que não vão são as que batem o pé pela presença do renegado. Do “sem amigos”. Do que ficou sem festa. Sim, as coisas são difíceis. Sim, está tudo caro e você trabalha demais. Não, não dá para ir em todas as festas nessa condição ou não sobra dinheiro. Não, presente não é obrigação. Mas sequer avisar que vai? Inventar desculpas se tornou normalizado, aquelas desculpas sem vergonhas e cordiais porque o brasileiro não sabe dizer não. Mas nem sequer responder? Porque a ausência de um não, que pode ser doloroso, e a ausência de uma desculpa, que pode se tornar dor de cotovelo são muito menores em relação à dor da ausência. A falta de confirmação de importância.
Porque tudo que as pessoas que AINDA tem amigos, ou as que continuam tentando ter e fazer amigos em novos bares, cursos e academias querem é validação. Validação como você quer do seu chefe pela hora extra, do seu banco ao diminuir os juros, dos seus pais segundo Lacan, do seu professor ao ver sua nota, do seu amigo ao te apoiar, de si ao fazer terapia, dos outros ao requerer brutalmente a presença deles em seu aniversário, vida e cotidiano quando você nunca está disponível para eles.
Adultos não estão querendo mais agir como adultos. Não querem ter contatos, obrigações, datas comemorativas. Todo mundo quer ficar em casa, cultuando a vibe de idoso (eu gosto dela, mas como tudo, não romantizem), de ir embora cedo de festa, de não dar presente para não ter que quebrar a cabeça, gastar demais, marcar presença.
Você pode ir no bar, dar um abraço, dividir uma batata com outro amigo ou nem consumir nada. Você pode avisar que não vai. Pode mandar um texto, vídeo ou áudio bonito. Ultimamente na era da internet, uns reels e uma marcação de foto nos stories já é um sinal de importância quando o seu amigo te ignora no zap faz três meses. E é o mesmo amigo que manda 30 vídeos por dia no Direct para um primo seu que ele achou muito divertido.
Tudo isso mascarando um individualismo que é uma crise moral e social profunda no nosso planeta em ebulição. Será que quando a ebulição se tornar ainda mais aparente as pessoas ajudarão umas as outras ou se tornarão ainda mais solitárias, egoístas e ranzinzas em nome da sobrevivência? Não vejo nenhuma mudança do cenário atual.
Acho que a IA será um problema enorme para artistas, pintores, escritores, redatores e muito mais. Até já fiz uma nota sobre isso aqui. Mas também acho que será péssimo para as empresas de cartões comemorativos que já estão em decadência, já que ninguém compra cartões para escrever algo fofo há décadas, agora que temos as redes em mãos para se ignorar mutuamente.
Os textos genéricos de Facebook se tornarão auto reprodutivos e criarão consciência, engolindo todos os tiozinhos do pavê que postam a mesma frase genérica da Clarice Lispector. Frases que ela nunca escreveu. Os amigos vão envelhecendo e você nem vai lembrar como é a voz deles, ou o rosto, já que a última foto que tiraram juntos foi em 2018 e os filtros do Instagram cada vez mais modificam essa pessoa que nunca te diz se pode ou não tomar um chá da tarde na sua casa em agosto de 2030.
Existe constrangimento em admitir que não quer ir ou tá sem um puto no bolso. Eu vivo assim. Sou autora independente que recebe centavos por página lida de uma empresa chefiada por um cara que financia um foguete pessoal pra ele.
Mas existe algo chamado empatia, alteridade, confiança e intimidade, coisas que se supõe que amigos tem. Em uma festa com 30 convidados, ninguém ir, é um sinal claro de que há algo de errado com a menina, mesmo que essa situação ocorra pelo menos cinco vezes em um mês em diversos locais com outras pessoas? Ou é um sintoma de que, na busca incessante pelo sonho meritocrático no capitalismo tardio, nessa sensação esmagadora de individualismo que projetam na gente e projetamos no outro, nessa independência geral onde ninguém precisa de ninguém, TODOS ficam sem amigos?
As pessoas estão normalizando a falta de consideração, normalizaram a tecnologia como uma balança de contato falso, onde a interação na internet é o que define a relação na realidade. Não é. A pessoa pode curtir e comentar tudo seu e vocês não precisam ter responsabilidade ou intimidade por isso. O seu amigo pode te ignorar e estar sempre na sua casa. Assim como todas essas interações virtuais fantasmagóricas, parecem muito, mas são migalhas afetivas induzidas por um mundo que quer que você produza constantemente virtualmente, consuma constantemente materialmente. Nem um mundo, um grupo de homens comandando algumas empresas. Esses fantasmas querendo que você seja fantasma, apenas uma foto visualizando as fotos dos outros, enquanto eles “vivem de verdade”.
Você gasta mais estando sozinho, sem depender dos outros. Gasta mais ao ter que se modificar para tentar se adaptar às novas relações virtuais ou ciclos de amigos. As relações estão se tornando cada vez mais parassociais e se distanciando de amizades nucleares. Chamo de amizade nuclear furtando o termo sobre família nuclear e extensa, incluindo vivências para além da heteronormatividade. Não considero amigos uma extensão, porque muitos amigos podem ser o núcleo de vivência, até mais que família.
Entre tudo que poderia ser idealizado, idealizaram o oposto do que é amizade, quando deveríamos estar idealizando e alimentando as relações nucleares com pessoas que realmente importam, não 30 pessoas ou 10, mas aqueles que realmente deveriam se importar e decidir alegar falta de tempo, cansaço ou dinheiro. Nunca se trabalhou tanto como hoje, portanto, TODOS estamos MUITO cansados. Nunca antes se ganhou tão mal, portanto estamos todos sem dinheiro. No passado, na sua juventude, com dois reais e um bloco de carnaval se criavam histórias com amigos para serem contadas pelos próximos vinte anos. Excluindo a inflação da conta, isso ainda pode ser feito. Mas tem que se querer. Por que ninguém quer mais?
As pessoas decidiram agir como bichos na selva, como pessoas sem controle e que nunca tiveram uma relação com ninguém senão o Balu. Aí aviso para as pessoas lendo isso, se identificando como pessoas sem amigos ao mesmo tempo que são amigos irresponsáveis (normalmente os dois grupos são misturados):
Você não é o Mogli, não aja como tal.
Você não é um bicho que pode sumir na floresta do resto do bando e nunca mais ser achado porque esqueceram de você. Até o Mogli, apesar de teimoso, sabe como tratar amigos. Você não pode agir como se tudo bem ser bancado, não levar presente, ir de barriga vazia. E digo você me referindo a esse Eu geral e não como um ataque pessoal a um possível leitor. Porque não dá para ter amigos se você não investir em relações. As pessoas começaram a se sentir confortáveis demais em serem mal-educadas, assim como sabemos que, depois de 2014 se abriram os bueiros e nunca, até 2018-2020, se foi tão lucrativo se mostrar burro e poder ser ignorante na internet. Mas esse papo é para outra hora.
Nunca antes na história foi tão fácil conversar com o outro. Ligação de graça, vídeochamada, live, reels, mensagens no Whatsapp. Mesmo assim, na era de informações, nunca antes ficamos tão cansados e atolados de pessoas e postagens querendo nossa atenção. Não precisa dar atenção para tudo, mas também não dá para se isolar no campo como um Unabomber e fingir que é descolado demais por não avisar que não vai em algum lugar.
Porque será que é tão mais fácil culpar um aniversariante sozinho em uma foto do que um círculo de pessoas que decidiram não ter responsabilidade com o outro e, portanto, com elas mesmas, já que uma vida se faz em conjunto?
Acho que quem acompanha a Anaforismos sabe que os textos de Anábase normalmente trazem mais perguntas que respostas. É porque eu também não sei. Não sei de nada e anseio por saber de tudo.
Também porque quero a resposta de vocês, saber o que vocês acham.
No fim do dia, tudo que quero é criar mais coragem para confiar em mim mesma e me permitir só ser amiga de quem me aceita assim, não ficar me recortando para caber em lugares. Um pouco de individualidade faz bem, mas só uma xícara de chá. Ainda sei que, sendo eu, acharei pessoas com gostos diferentes e parecidos, que eu respeitarei e deixarei serem quem são.
Apoiarei, darei risada e nos dias ruins em que só posso fazer o mínimo, tentarei estar lá presente, mesmo que não em corpo, avisando que estou ali para além de figurinhas da menina coreana ou Tiktoks. Lerei as pessoas como elas me leem, vou chamar elas para comer um lamen. Ver um filme, falar mal dos outros como Tarzan e Terk. Porque tudo bem ser bicho do mato, mas nunca dar uma voltinha pela floresta pelos outros, também não dá.
Esse texto foi escrito no fim de um corredor em uma biblioteca recheada de livros maravilhosos que nunca lerei, então alguém ler isso com certeza será uma honra também, já que é um tempo que poderia estar sendo gasto com outra pessoa, autor ou qualquer outra coisa. Também noto ao reler que estou muito “Diane” no meu tom, talvez seja porque estou terminando pela sétima vez Bojack Horseman, ou talvez porque no fundo eu sempre fui meio parecida com ela. Talvez por isso a odiasse quando vi das primeiras vezes. Só sei que esse texto é a voz de uma irritação. Peço desculpas pelas gírias e termos, mas sou produto do meu tempo.
Pode ser que eu o apague, pode ser que eu o mantenha, revivendo de vez em quando pra provar que estava certa.
Em algum lugar da minha breve existência me lembro de ouvir que esse é um sinônimo de hospício, mas não acho em lugar nenhum. Vai assim, porque se não for, eu ressignifiquei e adicionei mais um belo nome para o Instituto das Loucuras que é aquela rede social onde sou abertamente uma usuária crônica.