Constantemente me pego pensando em dar satisfações para os outros. Por muito tempo minha relação com a escrita foi a estranha necessidade de dar satisfação por meio de outras palavras, facetas, quem sabe uma satisfação mentirosa, fictícia. Acontece que hoje já não vejo mais assim, então perco o animo de tentar explicar pra alguém o que eu estava fazendo. Percebi que, não na escrita (não sempre), mas em outras áreas da minha vida, era falar com a parede: dar satisfação era não ser ouvida.
Aí cansei de tentar explicar o que estudo, o que faço da vida, o que tenho pensado, porque sumi e o que gosto. Cara, que preguiça de explicar o que gosto e o motivo de gostar daquilo. Se tenho que explicar, pior!, defender meu gosto como tanto hoje a internet exige, perco o interesse imediatamente (nem sempre na pessoa, nem sempre no que eu gosto, quase sempre no assunto):
“Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização.” — Saramago
Mas gosto de dar satisfação para meus assinantes, é como bater o contracheque gratuito nua atrás de uma mesa de marfim: é esquisito, eu não pago pra ser lida e vocês não pagam pra me ler. Ninguém dá a mínima (eu acho) pro que ando fazendo por aí, mas cá estou eu, transparente, contando, porque, de alguma maneira, vocês continuam olhando. Que relação bizarra de voyeurismo é a literatura em Newsletter. Deveríamos falar mais sobre isso? Ou deveríamos falar menos sobre todas as coisas?

Cá está o contracheque que justifica meu desaparecimento. Já aviso que nada é tão interessante assim que pareça justificar seu tempo, mas talvez, no meio de tanta abobrinha pra se justificar e justificar meu gosto (de maneira velada), algo seja pescado pra ti. Nua como vim, o que eu fiz:
OUTUBRO:
Fiz uma (duas) tatuagens com uma amiga, uma da Mafalda, que só revela que sou mesmo uma aluna de Letras e futura professora invicta (mas ela é meu personagem espiritual, não dá) e outra da pedra do fato concreto de Over the Garden Wall (O Segredo Além do Jardim – Cartoon), desenho do qual eu acho que já falei por aqui, mas se não falei, deveria falar mais. Fiz ela porque preciso de mais concretude em mim (e na minha vida).
Além disso, você sabia que dinossauros tinham orelhões, mas como orelha não tem osso, não tem como saber? É um fato concreto!
Comecei, para a disciplina de Literatura Portuguesa, meu segundo livro de José Saramago: O Ano da morte de Ricardo Reis. Sem saber mais do que fatos de ensino médio de Pessoa, e conhecer muito pouco de Ricardo Reis, fui atrás das odes e me embrenhei nesse livro modorrento, de maneira lenta. O livro todo é triste, chuvoso, e eu também estava triste e chuvosa. A playlist triste e chuvosa pra quem quiser:
Também vi uma mostra de filmes do cancelado Tim Burton e dormi quando começou o chatíssimo “A lenda do cavaleiro sem cabeça” (depois de quatro filmes), não, professoras de francês, vocês não vão me provar que é o melhor do diretor quando na mesma mostra finalmente vi uma faceta do morcegão que não me deu ojeriza em Batman: O Retorno.
Junto dessa chatice muitas aulas de direção, muitas provas de coreano e fui mesária na eleição. Maldições.
NOVEMBRO:
Feira do Livro da USP.
Comecei a assistir Garota do Momento que se tornou minha obsessão:



Prova do Detran.
Todo o resto foi choro e trauma.
DEZEMBRO:
Achei que estaria de férias mas tive prova de filologia, prova de coreano, muito choro envolvendo todas as provas e outra prova do carro (o que implica não ter passado na primeira). Todo o resto foi medo das notas do semestre, trabalho (que também estava em todos os outros meses depois do texto de 1 ano da News e vai permanecer).
Terminei o livro que comecei em Outubro (16/10 a 05/12 pra ser mais exata). “O Ano da morte de Ricardo Reis” não supera o grandioso “Ensaio sobre a cegueira”, que provavelmente modificou minha forma de ver a vida de tanto que me machucou, mas por algum motivo, Reis (o de Saramago) ainda retumba em mim constantemente.
Vi um comentário no GoodReads que define bem o que sinto por ele, dizia algo como;
“Eu odeio muito esse homem, ele é desprezível e apático. Mas nos meus piores dias, me odeio mais ainda por parecer com ele.”
Quando chove, quando me sinto apática, com medo de viver, com medo de opinar, eu lembro desse “Doutor”, sem pai, sem documento, assassinado. Ao olhar pra São Paulo, uma tentativa de Lisboa já natimorta, lembro dele. Lembro dele mais do que gostaria, porque vivemos que nem ele. Se Reis não aguentou o que via em 1936, não aguentaria a virada do século. Fiz uma playlist pra ele (ou pra ouvir enquanto tenta ler esse calhamaço da lista dos 1000 livros pra ler antes de morrer), se quiser ouvir, só clicar aqui:
Fui lá me humilhar pra pegar livro na dinâmica pavorosa do Tiktok, saindo com o saldo: “O avesso da pele”, “Ainda estou aqui”, “Olhos d’água”, “Torto arado” e “Irmãs Blue”. Foram nove horas de fila no calor e chuva, com gente furando a fila, segurança aceitando propina pra passar jovenzinhas na frente e fazendo insinuações, além de suor, falta banheiro, falta de organização e excesso de elitismo do pessoal da galeria.
Vi Megalópolis e Ainda Estou Aqui (no mesmo dia). Odiei e sai decepcionada de um, amei e saí em choque profundo de outro. Nem preciso dizer qual. Um deles é uma tragédia sem precedentes com ditadores com máscaras libertárias e tropos superficiais. O outro concorre a três Oscars. Ah, alguns dias depois vi Wicked, sem saber nada da história. Me apaixonei! No one mourns the wicked... Adoraria ver o espetáculo, que voltou em São Paulo. Se tiver a oportunidade, não perca. (E me conte como foi).
Li “Cleópatra e Frankenstein” da hitada no BookTok e BookTwitter Coco Mellors. Me surpreendi (positivamente). Também tive meu primeiro contato com Mutarelli, com O Astronauta (não gostei), A caixa de areia (não entendi) e Mundo Pet (Eu AMEI!). Uma crescente que combina com a “vibe” do autor.



Conheci a Keum Sendry Kim, autora e quadrinista sul-coreana de HQ’s que contam os dramas políticos, culturais e familiares de uma Coreia machucada desde a guerra e consegui um autógrafo.


JANEIRO:
Comemorei o ano novo com a família. Completei 3 anos de namoro. Abandonei o coreano. Zerei CupHead com meu namorado, ainda que ele tenha finalizado a maior parte das fases e me salvado muitas vezes, eu fui de grande ajuda com a Sereia Iara. Além disso, eu que derrotei o Trem Fantasma, Fui em um casamento do amigo do meu namorado. Joguem se puderem e passem raiva como passei, mas se deleitem com um jogo lindo. Começou uma reforma em casa. Insuportável.
Fiquei bloqueada da biblioteca da faculdade até maio. Descobri que tenho mesmo a surdez bilateral. Mandei um e-mail gigante para um professor surtando após ler o livro que ele me recomendou (Encarnação, de José de Alencar). Terminei o ‘Encarnação”. E “O Avesso da pele”
Voltei com a News. Vi Nosferatu (e odiei) Comecei Brooklyn Nine-Nine depois de 4 anos tentando sair do piloto (obrigada, amor). Assisti os dois Scarface e não consigo parar de pensar como o antigo brincou com símbolos e o novo deu um maior charme a violência. Sosa, seu lindo! Ops, motherfucker, fuck e derivados incessantemente.



Comecei a “Ilíada”, “Akira” e “Uma Mulher” de Annie Ernaux. Esse último para um clube (dupla) do livro.
Visitei o Dona Vitamina e não consegui comer um lanche inteiro porque era enorme (e me empanturrei com as vitaminas antes). Descobri a Chappell Roan (na verdade, dei uma chance depois do hype na imagem dela abaixar, até porque quero escutar boa música e não idolatrar divapop pra viralizar em tweets). Comprei um livro de história, meio que pra preencher lacunas “do zero”.
FEVEREIRO:
Ainda estou vivendo ele. Fui no MASP. Cheia de cólica, mas foi lindo. Assisti “M - O maldito” (1951) e me encantei. Vi “Por um punhado de dólares” e “Yojimbo” e dei piruetas de encantamento. Até que entendo os macarronistas do MacMahon. Escrevi esse texto. Mas acaba aqui porque o nome do texto é “tudo que eu fiz enquanto não estava aqui” e agora eu estou aqui de volta então seria tudo que estou fazendo enquanto Ainda Estou Aqui (que vi de novo com minha mãe e irmã na promoção de cinema).
SALDO:
Como se a vida fosse um extrato. 7 livros lidos. Uns 20 comprados. A maior parte lida é muito boa. Recomendo especialmente (sei que se eu recomendar o calhamaço de Saramago ninguém vai ler.) “Mundo Pet” e o surpreendente “Cleópatra e Frankstein”. Discordo das críticas de que era necessário um final feliz ou pelo menos “explicar o que aconteceu com todos, porque se não fica raso” Não é a proposta do livro, a proposta é a troca de experiências nas relações que modificam indivíduos em relacionamentos e individualmente. Coco tem potencial futuro, mas não pode se render a formas fáceis. 11 filmes vistos.
Acho que você deveria dar uma chance ao saldo pessoal com “Mundo Pet” se:
· Gosta de quadrinhos e histórias rápidas
· Tem deleite visual por mesclagem de estilos de pinturas e desenhos
· Quer conhecer ou conhece o trabalho do Mutarelli
· Quer tramas que falam de diversos assuntos, mas convergem no mesmo drama de um homem esquisito e incompreendido.
Recomendações Pessoais para as histórias “Eu acordava chorando”, “Crianças desaparecidas” e “Dor ancestral”.
2. Acho que você deveria dar uma chance ao saldo pessoal de “Cleópatra & Frankenstein” se:
· Você quer dar chance a autoras contemporâneas;
· Quer entender o motivo de determinados livros hitarem na internet;
· Gosta de Sally Rooney;
· Quer um livro sobre as relações das pessoas mais horríveis e new cosmopolitas que podemos encontrar na ficção;
· Quer uma mistura de Bojack Horseman com Grande Gatsby, Closer e outros filmes de gente rica com problemas fúteis que mascaram problemáticas intensas do ser humano.
Entre os comprados há expectativa em “Água Funda”, “Uma Mulher”, “A mais recôndita memória dos homens” e o tão postergado “Babel”. Isso me lembra que no meu texto de sommelier, junto de muita avaliação veio muita expectativa, dos livros que falei que leria, só li 3, de 24.
Mas em compensação li 69 livros em 2024, sem respeitar nem um pouco meu próprio gosto de sommelier. Na lista atual temos 20 livros, entre eles “Gente Pobre”, “Dois Irmãos”, “Mata Doce” e outros. Só Deus sabe se vou seguir isso. Mas, prometi pra mim mesma que ia evitar comprar livros esse ano (o de história não conta.)
Não vou discutir como ambos os Scarface tem uma espécie de propaganda anti-imigração e só desvelam o lixo que é os Estados Unidos em relação a estimulação a violência em nome de uma falsa meritocracia. Também não vou discutir se a atuação de Ariana Grande foi boa ou não, mas Wicked é um musical pra lá de sólido e bem, ser hater de musical é muito anos 2000.
Eu vivi, apesar do cansaço, da dor e da cobrança pra voltar pra cá ou pra continuar no coreano. No fundo, talvez a gente saiba o que é bom pra nós e só precise de tempo pra “fazer tudo que não fizemos quando fazemos X,Y,Z”. Tenho tantas coisas pra fazer e vir correndo contar…Acho que a gente QUER (leia-se precisa) contar, mesmo que ninguém esteja aqui. Ando muito deprimida, ainda, como muitos por aqui, mas me agarro a esse meme boomer do Snoopy. Ajuda muito a continuar:
Amiga, amei o texto! Eu também não sou muito a favor de dar explicações e satisfações, mas curti demais esse formato de texto. Eu acho que esse tipo de recapitulação faz a gente perceber o tanto de coisas que fazemos em somente alguns meses, coisa que, no passar nos dias, a gente não nota porque já estamos vivendo; é preciso um certo afastamento pra fazer esse tipo de observação. Esse texto me deu vontade de viver em vez de sobreviver, são coisas bem diferentes. Às vezes, esqueço que viver é mais do que entregar trabalhos da faculdade e ficar em casa estudando; só isso não é suficiente, tem muito mais a fazer, lugares a conhecer, livros pra ler, filmes pra assistir. A propósito, vou levar suas recomendações em consideração, até hoje gostei de tudo o que você me recomendou pra ler ou assistir, você tem bom gosto.
Eu não aparecia por aqui há bastante tempo, mas espero me fazer mais presente aqui. Aguardo o próximo texto :)
Comece por Água Funda. É lindo demais!!!