Um dos únicos atores negros no cinema de 60 foi Grande Otelo, que entre diversos papéis, acabou representando arquétipos preconceituosos que são vistos e debatidos no livro O negro brasileiro e o cinema, onde também representou o povo preto numa época em que o racismo passou a ser combatido principalmente com a luta contra a segregação racial nos Estados Unidos.
Grande Otelo foi lido e analisado pelo autor como um autor que retrata o povo brasileiro em Macunaíma, de 1969. No entanto, ainda na época, apesar da provocação ao regime, a ficção brasileira ainda parecia indisposta a retratar vivências de maneira correta e adaptou o livro de Mário de Andrade com fidelidade, mantendo a cena que embranquece o personagem.
Mais de 50 anos depois, filmes como Bacurau, Cidade de Deus, Mundo Cão, Tim Maia e outros passaram a retratar histórias de resistências em diferentes tipos de periferias brasileiras de um povo negado pela sociedade. Em Bacurau (2019), a comunidade demonstra poder social por meio de uma rebelião contra o poder público, que para além de um debate sobre xenofobia, é um debate sobre raça no país mais miscigenado do mundo. Em Cidade de Deus (2002), a esperança de um futuro melhor em meio ao tráfico e abandono, um clássico instantâneo brasileiro onde a temática da favela se tornou um conceito nacional que tenta ser replicado em outros filmes. Para uns, uma saída fácil e pobre de texto e realidades, para outros, um retrato fiel da vivência brasileira em todos os escopos do Rio, de São Paulo ou qualquer outro lugar, não dando espaço para dizer que é “vira-latismo” aquilo que está no cotidiano e não pode ser negado.
Abro aqui um espaço para um comentário de que, meu professor que pediu essa resenha em uma disciplina de Cinema Brasileiro na ECA, não só elogiou esse ensaio, como em uma das aulas me lembro dele citar que o cinema brasileiro tem e sempre terá um quê de documentário.
A realidade não escapa ao Brasil mesmo em sua ficção e daí, muitos negam nossa arte cinematográfica, mediante a negar também a própria realidade.
Se hoje trago tanto o comentário quanto o ensaio, é por motivação do querido e reconhecido professor, que disse que eu deveria publicar em algum lugar.
Em Mundo Cão (2014), filme com Babu Santana e Lázaro Ramos, menos conhecido entre os citados, o amor de pai supera violências que beiram o animalismo e a violência racial e social. Já em Tim Maia (2014), a biografia do cantor negro é vista da pobreza a ascensão, o mostrando como exceção, não regra.
Mazelas do povo preto, no último país a abolir a escravidão, passaram a ser desvelados na ficção, embora conversem muito com a realidade independente de época, lugar e história. Mesmo que não queiram, acabam sempre escorregando em debates raciais, por ser algo intrínseco a divisão do país: social, de gênero, econômica, criminal, etc. Histórias que escapem disso são impossíveis no momento em que o sistema mantém a realidade material e social desses povos a mesma, os empurrando para margem da economia alicerçada na vida.
O movimento de reparação é o que permite que as histórias passem a se descolar de serem produtos políticos de seu tempo. Sintomático que um filme sobre violência policial tenha saído com tão pouco burburinho em um ano em que o país começava a declarar abertamente determinadas violências a grupos revestidas de tomada de consciência, culminando posteriormente no patriotismo que flertava com o fascismo e genocídio sanitário.
O filme mais recente a retratar isso, aclamado pela crítica, inclusive o primeiro filme de um diretor preto a quase representar o Brasil na cotação da categoria Melhor Filme Internacional no Oscar, é Marte Um de 2022, roteirizado e dirigido por Gabriel Martins, com elenco majoritariamente negro. O filme acabou não sendo escolhido na seleção final de filmes, o que demonstra a falta de tato de críticos para com o cinema preto que não culpabiliza o branco ou não aterroriza, como o Jordan Peele faz muito bem. O filme só serve se for para ser útil ao debate da branquitude? Com isso, o filme que era o mais cotado entre diversos outros não participou da cerimônia e nenhum filme brasileiro representou o país no ano de 2023.
Na trama, uma família de quatro pessoas que moram na periferia de Contagem, em Minas Gerais, buscam seguir sua vida em um país que acaba de eleger um presidente de extrema-direita, contrário de tudo que eles são. A trama do filme os enlaça e separa ao longo da metragem através de um desejo único e, ao mesmo tempo, individual de cada parente. Mesmo nunca revelando em nenhuma palavra o debate racial, ele está, para mim, nos nós do filme da primeira à última cena. A eleição não é exibida na cara e sim pincelada mediante cenas de fundo.
O filme começa o debate por falar de uma periferia esquecida, fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, em um dos estados com histórico de maior chegada de escravos no século XVIII em um estado com grandes incidências de racismo. É uma produção que reabre a ferida das produções brasileiras em relação ao abismo racial do Brasil, como demonstrou a reportagem da Carta Capital:
“Já a pesquisa “A Cara do Cinema Nacional”, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, revelou que homens negros são só 2% dos diretores de filmes nacionais. Atrás das câmeras, não foi registrada nenhuma mulher negra. O levantamento da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) considerou as produções brasileiras que alcançaram as maiores bilheterias entre 2002 e 2014. Dentre os filmes analisados, 31% tinham no elenco atores negros, quase sempre interpretando papeis associados à pobreza e criminalidade.”
Marte Um tem uma estrutura familiar comum: mãe, pai e filhos, a menina mais velha e um menino. O filme carrega um nome simbólico em relação ao mais novo, mas percebo uma narrativa que escolhe abrir caminhos individuais para cada personagem e fechá-los, em uma construção hermética fiel à ideia de família. Todos têm espaços individuais, mas a vida de todos é enlaçada a partir de sangue, teto, obrigações, mundo, raça.
Rejane Faria, a mãe Tércia, é empregada doméstica, que hoje são mais de 6 milhões de trabalhadores do país. É a mulher que tem a dupla jornada: faz mercado, cozinha, limpa, cuida do marido, dos filhos, com a carga da mulher “mãe de todos”, preocupada e carinhosa, como demonstra em cena com o personagem Toquinho, uma participação exclusiva e bem humorada do influencer, que não força um personagem, não tem tanta importância na trama e não vincula tudo ao mundo da internet de formas forçadas, como outros filmes com público adolescente tentaram emplacar.
A crise da mãe começa quando, ao ser enganada em uma pegadinha de TV em um tom dos anos 90/2000 que pode representar a retomada de brincadeiras antigas e preconceituosas com a chegada de um governo conservador, ou seja, retrocesso. Ela acha que vai morrer, entra em um espiral de pessimismo e ansiedade paranoide, com crises de pânico, crendo que a violência existente ao redor é fruto de sua existência.
Em um país onde mais de 26% das pessoas têm transtorno de ansiedade, sendo a líder dos transtornos entre todas as faixas etárias, isso entre os diagnosticados, já que muitas pessoas de periferia não conseguem ter acesso, é de se pensar como a mudança na economia de uma presidência não feita para pessoas pobres e pretas pode mexer com a mente de maneira irreversível. A própria personagem é atendida em um Hospital Público e tem recomendações básicas para se acalmar, pois o sistema não tem profissionais que cheguem para todos para auxiliá-la da maneira correta. Com a responsabilidade com o resto da família, mesmo os momentos de felicidade são encobertos com a garganta fechada, a tontura e o medo da violência, já que o grupo mais invisibilizado é o que ela está como mulher preta e pobre, mãe e diarista.
Sua trama é a última a fechar, pois tranquila com a visão da família e “se vingando” da mídia que a ridicularizava, se vê livre de preocupações e descansa no sono “em berço esplêndido”, embaixo de um céu estrelado, como quem pela primeira vez é ninado no lugar de ninar. Nesse momento recolhida, vulnerável e relaxada, a ansiedade dá lugar ao maior medo dos aflitos: o presente. A atriz Rejane tira o papel de letra, como na cena na mesa de jantar contando a pegadinha explosiva da qual foi vítima, a família rindo despreocupadamente, não vendo o sentimento ansioso que se formava como problema que talvez a acompanhe por quatro anos ou a vida toda, dando folgas aqui e ali. A cena é mais irretocável ainda quando a fotografia fica fechada em seu rosto choroso, não filmando mais ninguém. Grande destaque, depois da personagem dela, Néia, na excelente série Segunda Chamada, que também aborda questões raciais.
O pai Wellington, vivido pelo excelente Carlos Francisco de Bacurau, é uma espécie de faz-tudo de um condomínio há anos. O lugar, que se autodeclara chique, parece ser de classe média, mas gera choque visual para o personagem, que é deslumbrado e subserviente. Gera choque também junto de outros cenários do filme, todos gravados em locais reais da periferia, sem maquiagens.
Além disso, o personagem luta contra o vício com o álcool por quatro anos sem desistir, com auxílio de uma igreja evangélica, algo que pode ser disseco com calma no debate do crescimento do protestantismo acima de outras religiões no Brasil, incluindo muitas pessoas pretas, já que são suporte, rede de apoio e encontro de amigos em uma comunidade. Wellington é pouco politizado, muito solícito e inocente. Apesar de ser um pai tranquilo, ainda tem enraizado em si questões conservadoras mais próprias à ignorância do que como um posicionamento à direita. Se abstém de falar da eleição, mesmo incomodado e descontente. Não entende o relacionamento da filha ou a teimosia do filho em relação ao futebol, sonho dele e coisa com o qual ele é unicamente aficionado e exigente. Quer que o filho se torne jogador e luta por isso com orgulho.
A trama do pai, diferente das outras, é enxergar por meio dos outras feridas que existem neles todos e que são invisíveis a ponto de, ao não ser politizado, ser enganado por quem parece ser. Repentinamente perdendo tudo em um momento de virada da trama por quem pregava coletividade (debate que em filmes como Bacurau funcionaram em uma comunidade com outro tipo de sistema), é impossível não se revoltar com a injustiça social que ocorre sem que ele perceba. Sua história é a de milhares ao redor do Brasil que perderam empregos e parecem não exigir quase nada da família que, dos antepassados até hoje, parece nascer quebrada, quando as quebras são feitas pela sociedade. A diferença de Wellington é que ele não entra em um espiral violento, mas ao jogar fora sua ficha e recomeçar, dá liberdade para entrar no seu coração outro olhar sobre seus filhos, sem vícios de comportamento.
Eunice, a jovem Camila Damião que atualmente está na novela Terra e Paixão1, tem uma história feminina escrita com muita sensibilidade que, para além do debate racial, percorre a descoberta sexual Queer, maturidade, cobranças de papéis de gêneros, etc. Eunice é a personagem que tem muitas camadas da negritude feminina, escondidas sob o rosto sério da atriz e com a qual é impossível uma mulher LGBT, como eu, não se identificar. Ela cobra participação do irmão mais novo na casa, cuida da mãe, se assume, se vê como alguém que quer mais do que a periferia, vê diferenças sociais na faculdade de direito, no racismo velado ao procurar emprego e inclusive ao mudar de casa com a namorada, aparentemente de família endinheirada, fuga da regra.
Quase como se tivesse um filme solo, as não ligações com o pai e o amor pelo irmão vão preenchendo vácuos do filme delicadamente, como a cena em que dá um livro para o pai mesmo sendo sobre futebol, que incentiva a leitura e tenta conectar os dois em uma ceia de Natal simples e um pouco constrangida, tímida. Ou então, a conversa no escuro com o irmão. Sua história não se fecha ao se mudar, há receio, mágoa, rejeição, afastamento, mas tudo pode mudar ao se conectar com o que representa o contrário dela: Wellington. Na realidade, as vivências dos dois têm muito em comum: resistência.
Deivinho, o caçula entrando na adolescência, é interpretado pelo estreante Cícero Lucas. A trama, para quem vê os pôsteres, parece ser sobre o sonho dele de ser astronauta e astrofísico, mais especificamente participar do projeto Marte Um, de levar humanos pela primeira vez em 2050 para habitar e colonizar o planeta Marte sem retorno. Tímido e um pouco melancólico, até por seu ideal de ir embora do planeta, o menino tem o carinho da mãe, o apoio secreto da irmã e as exigências de arcar com os sonhos do pai, tudo de uma vez… Recai nele os sonhos mais fortes:“O que em ti tende ardorosamente para a felicidade” de Kant, citado na magia de Agamben, que vai se esvaziando ao longo do filme pela pressão de não ter dinheiro num mundo sem acessos. O protagonista divide tela com os familiares porquê, por ser o mais novo, depende deles o seu sonho e sua formação de caráter. Deivinho tem seu ícone preto, Neil DeGrasse Tyson, que o inspira. No filme, Neil vem ao Brasil, mas vê-lo custa muito e seus pais estão endividados. Além disso, é necessário ir para São Paulo e eles moram longe. Sua irmã arma um plano ao invés de falar abertamente com os pais, retrato da vergonha de ser quem se quer e ceder a pressões, para realizar sonhos de uma família com poucas oportunidades.
Inteligente e curioso, ele se aventura por ferro-velhos atrás de seu objetivo. Nas palavras de seu ícone: “crianças já nascem cientistas”. É através dessa ideia que podemos pensar, que a descida de bicicleta é não só tentativa ativa de Deivinho de se machucar um pouco para não ir no teste, mas se aventurar de forma livre para defender seu sonho. De tentar “flutuar um pouco” antes de cair em plena gravidade. Apesar de ser um menino que parece estar crescendo e se endurecendo pela vida e racialidade, Deivinho demonstra sensibilidade ao pedir, por exemplo, para irmã não sumir e o visitar, mesmo que ele vá para mais longe. Cena em que é impossível não chorar. Deivinho escuta a mãe, atende ao desejo do pai e apoia a irmã. É o pilar que segura a família, já que sua perna quebrada significa se mobilizar junto dele e visualizar o mundo através do que ele construiu, inclusive usando um objeto dos sonhos de seus antepassados: a lente do avô. O sonho dele conversa com a HQ Jeremias: Pele, onde o clássico personagem da Turma da Mônica cria um olhar racializado ao ver seu sonho de ser astronauta ser ridicularizado.
Conversas na cama, cenários e diálogos cotidianos que não tentam ser engraçados, mas o são, conversam muito com a realidade brasileira: histórias individuais se tornando debates universais. Marte Um poderia ser sobre qualquer família brasileira, não há como não se identificar, outros filmes fazem isso, como a trilogia de filmes queridos Minha mãe é uma peça, mas é essencialmente sobre uma família preta em perfeito “lançamento espacial”, pois é o momento de brilhar. Serão ouvidos: seus sonhos e feridas, pois ali existem. A família quer ser vista, vai ser vista, precisa ser!
É uma história contada por eles representando todos, um universo todo em uma casa particular, sensibilidades pessoais não explicadas, mas representadas visualmente, numa espécie de ode a família em situações precarizadas amenizadas pelo amor.
Talvez o verdadeiro Marte Um seja o descolonizar o pensamento do homem branco e dar abertura para as peles pretas trilharem os próprios caminhos, inclusive em cinemas que não eram retratados antes, como os do Centro-Oeste ou do Norte, como tentou o filme Noites Alienígenas. De Estética da Fome:
“Nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. Uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado.”
Está dito aí tudo que o filme representa, as violências retratadas nele são revolucionárias, pois não tomam lugar do fetichismo da dor, mas sim da sensibilidade original de superá-las e demonstrar união. A visão utópica não existe, o final melancólico evidencia que o trajeto será difícil, violento, afinal o sistema requer dinheiro.
Tem quem diga que o final é pessimista, que demonstra a impossibilidade, que o filme não conta nada, pois as situações são cotidianas e se encerram em si mesmas, quando na realidade é o retrato hermético da vida, as coisas vão, voltam, passam, se resolvem, ficam abertas para sempre, como alguns dizem em críticas, as pontas soltas.
Outro debate, do qual não vou me estender, é que é necessário um pouco de sensibilidade para com as pautas alheias no além-político para ver o filme como o que ele é: sobre família.
Ele não é um “retrato marxista com pautas identitárias LGBT de sempre, pago pela Lei Rouanet” como dizem alguns reacionários, mas a vivência de pessoas da equipe da produção, incluindo o próprio diretor da possibilidade do sonho, da fuga do que é inserido como verdade, da luta pela permanência de magia para crianças como o Deivinho. Não há Marxismo nisso, muito menos uma mensagem de meritocracia (não entenda isso no final, pois não o é), há resistência do indivíduo em um pano de fundo, que poderia ser outro, que o violenta.
O governo mal é utilizado de argumento para o filme, mas mesmo sua citação balança os poderes de quem pode violentar, pois agora o violentado tem consciência do ato e não o aceitará mais. Como não aceitou, onde estamos agora, em outro período político, em 2023.
Mas acho que uma das saídas é crer no poder da mudança em meio a um medo que durou quatro anos. O trajeto astronômico do filme foi feito antes mesmo de seu lançamento. Roteiro impecável, unificado, elenco e trilha sonora de artistas pretos, demonstram que as estrelas iluminaram a chegada do filme, ao que esperamos ser mais e mais brasileiros unindo raízes até o céu com esperança e afeto, superando crises econômicas e preconceitos raciais para representações do real na ficção, ganhando cinco ou todas as estrelas, independentemente da escolha de uma Academia.
A atriz Camila Damião também seria uma personagem lida como lésbica na novela Terra e Paixão, de Walcyr Carrasco, fazendo par com Renata Gaspar. Recentemente a atriz Renata desabafou nas redes sociais a falta de atenção, desenvolvimento e até de censura na trama sáfica, um retrocesso para a emissora e um desperdício do talento das atrizes. Você pode ler mais aqui.
Nossa... Que resenha incrível! Confesso que, não tinha conhecimento da existência desse filme. Vou procurar pra assistir ❤️