Nos últimos dias ando muito irritada. Talvez seja porque não consigo respirar, talvez seja porque não consigo ver alguns amigos faz semanas, porque tudo é movido pelo dinheiro ou porque parei de entupir meu corpo do estrogênio que só me deixava deprimida (leia-se sem sentir nada), no lugar de sentir raiva quando eu deveria sentir. Larguei o anticoncepcional e é como se eu tivesse tirado um óculos que fingia ser cor de rosa dos olhos, mas era cinza. A vida fica bem melhor quando você pode sentir as coisas, diversas delas, entre elas a raiva.
Minha psicóloga pedia muito pra que eu me deixasse sentir raiva. Na maior parte do tempo eu me reprimia, se tornava mágoa, culpa, ansiedade e eu descontava a raiva em quem eu queria (e não merece nunca). Percebi que a raiva vem do nada, quando a gente não quer e, na verdade, não temos que querer nada.
A gente não controla as coisas. Como a gente que sofre por não controlar as coisas, né? E reclama, reclama…
Cara, não sei pra vocês, mas pra mim, isso é um alívio. Como ansiosa, sempre quero que tudo seja como eu quero, mas a realidade é que se tudo fosse atender as nossas expectativas, tudo seria um caos completo: individualismo se chocando contra individualismo. Não controlar tudo, ou melhor, não controlar nada, é viver mediante a expectativa de algo maior que nós. Daí tantos vem discutir e querer responder esse algo, na busca que a resposta do anseio cumpra as promessas de atender o que nós queremos e não o que esse “algo” quer.
Falando de maneira mais abstrata, querer controlar tudo e sofrer por isso é querer ser Deus. Dizer para um ansioso que controlar tudo é impossível é libertador ao passo que é frustrante. Não é uma cura, não é uma melhora, não é sequer uma ajuda, mas é um progresso de visão que estimula a viver melhor com o que temos e com o que buscamos. Esse texto NÃO é sobre conformismo.
Estamos sempre alinhando nossas perspectivas através daquilo que temos. Ouvi esses dias que as pessoas que ganham muito sempre querem ganhar mais. E isso só prova que alinhar as perspectivas, parar de querer ser mais, ou querer ter mais controle de tudo, ou mais coisas materiais (no novo mundo que querer e ter é ser) é permanecer andando e caminhando no ritmo cadenciado da vida: o ritmo que ela quer e nos propõe e que dificilmente controlamos mais que um ou dois passos de trote.
Podemos decidir nossas profissões, normalmente enquadradas em critérios já estabelecidos pelo que somos socialmente.
Famílias mais pobres nem sempre podem escolher e quando podem, através de muito sacrifício, escolhem carreiras que a médio e longo prazo, trarão estabilidade e retorno financeiro geral. Isso pode tentar ser controlado, mas não é uma certeza. A certeza está na escolha inicial de fazer a filha mais velha virar algo tipo médica, enquanto os mais novos aguardam a chance de talvez poder escolher o que querem ser. Algumas famílias priorizam o sonho com os quais não foram priorizados, deixam a gama infinita de escolhas abertas para filhos que não necessariamente tem sonhos, mas podem criar.
Podemos escolher o que vamos comer amanhã, mas se questionarmos o suficiente, veremos que isso também é um tremendo privilégio de escolha que nem todos tem. Podemos escolher o que vamos assistir, apesar de demorar mais na escolha do que ver do que quando estamos vendo de fato, principalmente hoje, que ninguém olha direito a tela ao tentar olhar para todos os estímulos possíveis.
Podemos escolher ir para uma rede social que tenta imitar a nostalgia de outra, permanecendo no vício virtual que nos controla e escolhe por nós como usar nosso tempo, rolando infinitamente sobre os mesmos assuntos violentos. Podemos escolher não ir para essa rede, melhorar nosso humor, nos proteger de algumas violências que nos são tão visíveis.
Podemos escolher com qual roupa ir num encontro, com qual pessoa namorar (tem gente que acredita que não se escolhe isso!), se vamos lavar o cabelo ou não, se vamos tirar férias, sair do emprego, pagar caro por um produto que não vale tanto assim, comer mais do que o nível de satisfação por gula, dar ou não presente pra alguém (sem reclamar de ter que levar a cerveja) ou ficar no mesmo ambiente que um criminoso.
Podemos escolher em quem votar (dentre as opções), ou qual sorvete tomar (entre os sabores), qual música ouvir (entre as milhares), qual livro ler (entre os que vamos comprar e os que temos em casa esperando).
Não controlamos afetos. Não controlamos a família, que apesar de ser um pouco da gente e sermos um pouco dela nos é tão diferente. São outros e preferem ser, tendo suas liberdades de escolhas e coisas pra controlar, o que é estranho porque inclusive, até determinada idade, nós somos uma das coisas para controlar.
Não controlamos um relacionamento, não decidimos que alguém ainda deve gostar da gente ou deve ficar. A pessoa pode escolher ir embora, estando errada ou não, porque a vida faz assim. Acredito que a determinados níveis, escolhemos sim gostar ou não de alguém, permitir ou não alguém, trair ou não alguém, magoar ou não alguém e outros. Escolher ir também é renunciar o controle de toda a situação ao ficar.
Não controlamos o corte de cabelo ou estilo da outra pessoa, não podemos controlar os vícios e as idiossincrasias dos outros. Não podemos controlar a existência, ela está em nós e ao mesmo tempo fora de tudo. Que duro que eu, que tanto sofro por nem sempre estar onde e como quero, tenha que escrever essas palavras tão tristes que nada significam além de que: as coisas não foram do jeito que você quer, não são do jeito que você quer e não serão como você quer. Você não tem o controle de tudo.
As pessoas sofrem por empregos que querem e não conseguiram, pelas férias imaginadas nas férias que estão tendo, pelo cabelo que nunca tiveram, pelas chances que perderam, pelos namorados que dispensaram, pelos sabores de sorvete que tomaram, pela decisão de sair de casa. Sofrem pelo que controlam, querendo controlar o que não podem.
Chorar, bater o pé e ser mimado, como muitos foram criados para conseguir as coisas, não trará nada na vida adulta além da falta de percepção tremenda de si e frustração pelo outro. No fundo, tudo será horrível e insatisfatório.
A si mesmo, por notar como se é pequeno, mortal, finito, incompleto, reduzido. Submisso às vontades alheias a nós, a um mundo cruel. Aos outros, porque ninguém nunca será ou alcançará a vontade de um pequeno deus, todos serão tão mortais quanto você, incompletos, frustrantes pelo real porque o ideal só existe na cabeça.
E aquilo que não existe é tão infinito, tão possível, tão perfeito, que é impossível competir com o que pode ser. É impossível competir com o que falta quando o que se tem sempre, sempre, sempre vai soar tão pouco.
Desde 2022 meus anos tem sido uma chuva de pequenos presentes. Presentes do que eu mesma conquistei, corri atrás ou de coisas que me ocorreram. Sofri muito em 2022, 23, 24… Choramos pelas expectativas e reclamamos quando elas são cumpridas. Queremos as coisas e reclamamos quando ganhamos. Pedimos para algo vir e ficamos com raiva quando isso vem. Estamos sempre insatisfeitos.
Mas que anos bons tem sido depois da enorme depressão em que me encontrava entre 2018-21. Que bom que tudo foi como deve ser e não como eu quis. Que bom que eu estava com essa enorme falta de controle, que não entrei na faculdade quando eu quis, não cai em ciladas amorosas que eu achava certezas, que fiz isso e não aquilo quando deveria ter feito isto.
Somos bichos estranhos, os humanos. Os únicos que, com presas na boca, barriga cheia, ninho quente e protegidos de um mal querem mais presas, querem mais barriga cheia que todos os outros, querem controlar a caça alheia, querem prender e bater no universo por ele ir contra perspectivas. Bichos que querem arredar tudo e amarrar como uma corda pra brincar de organização, todos os blocos a “minha maneira”. Venha tudo ao “nosso” reino e nunca nada, nem resto, ao vosso.
Meu namorado estava jogando Death Stranding, um jogo de videogame extremamente melancólico e cinematográfico, com uma estética levemente “slice of life” (pra mim) de apenas caminhar e curtir a paisagem do que restou. Já indiquei ele por aqui e acho que muita gente ia gostar de curtir a vibe.
Você não controla as decisões de quem sobrou no mundo, tudo o que você pode fazer é entregar sua parte e torcer para que o outro lado queira se conectar também. O jogo se inicia com uma frase do livro The Rope, de Kobo Abe:
“A corda e o bastão são duas das ferramentas mais antigas da humanidade. O bastão para manter o mal afastado, a corda para trazer as coisas boas para perto, ambas foram as primeiras amigas concebidas pela humanidade. A corda e o bastão sempre estiveram onde a humanidade estava.”
O volume II do jogo vai sair em breve e, fãs teorizam que ele será o jogo do bastão, já que esse primeiro é focado na conexão, em puxar as pessoas para si: a corda.
O que significa que será um jogo mais combativo, de afastar o mal, de manter coisas (e pessoas) longe. Talvez essa frase sintetize mais coisas do que a gente queira, como a questão da escolha.
Você pode controlar o que puxa pra perto, o que lança pra longe. Você pode escolher ir por um caminho ou por outro, subir uma montanha ou atravessar um rio, pegar chuva ou não, olhar incessantemente pro relógio como se as horas significasse mais que número relativos a um período do Sol no céu. Pode controlar levantar o bastão pra quem te criou, mostrar sua insatisfação pelo fato de ninguém na sua vida corresponder com o que você sonha, colocar a corda no pulso de alguém e fingir pra si mesmo que essa pessoa é a pessoa da sua vida. Pode usar um bastão pra defender alguém e uma corda pra se enforcar.
Que mundo terrível esse que duas coisas tão diferentes podem salvar e matar. Que duas escolhas modifiquem tudo, que a maldita e clichê frase em tons pasteis esteja certa: toda escolha é uma renúncia.
A partir da renúncia um caminho é fechado e, ele talvez nunca mais seja aberto. Você não pode controlar aquilo que não sabe o que é, aquilo que está fechado, aquilo que não escolheu. Alguns de nossos ímpetos de controle são falta de reconhecimento do que realmente controlamos: o que somos. Não são diagnósticos, empregos, maquiagens, cortes de cabelo ou viagens que vão definir isso. Não são as coisas que escolhemos que definem o que somos, muito menos as coisas que não escolhemos. São as coisas que não controlamos e nos afetam que são. Não estou dizendo para todo mundo renunciar a todas as escolhas e egoísmos, gostos pessoais e virar um mundo estoico, nem que todos entrem em jornadas de autoconhecimento que engolem o mundo exterior (e em conclusão, a ideia de coletivo). Não precisa saber o que somos para saber o que não somos.
Tenho muito medo de tudo, do fim do mundo, de perder amizade, de perder meu amor, de perder lembranças. De ficar mais esquecida, mais surda, de morrer como morreu minha avó ou o pai da Annie Ernaux. De ninguém lembrar de mim. De deixar de ser engraçadinha ou pensar tanto nos outros que me faço através deles. Odeio as queimadas, as teorias de conspiração que me parecem vencedoras, os malditos bets, os sonhos que não posso concluir por classe social ou gênero.
Odeio não poder controlar quem vive ou quem morre, que perdi pessoas quando eu era criança e nada podia fazer por elas, ou que não posso controlar as queimadas. Medo me afeta porque não se controla algo irracional: sou feita de medo e coragem.
A sua falta de controle fala muito mais de você do que de suas manias. Fala de como sua vida deve ser vivida. Se sentir mal pelas coisas que não pode controlar, pelas coisas que não pode fazer no dia de hoje é ser bastão pra si mesmo. Ser corda pra si mesmo é se puxar pra perto e questionar: o que posso fazer no dia de hoje?
Aprendi isso com a minha sogra, que tantas coisas faz em 24 horas. Que passou por uma cirurgia que me fez repensar como tudo é frágil e incontrolável, como passa pelas decisões alheias. Que benção ter escolhido ouvir isso. Isso basicamente é escolher me dar a oportunidade de controlar meu microespaço, nem que seja só por 24 horas. Só por 24 horas se controlar no que se pode fazer, escolher, ser.
A raiva passa quando noto que não é uma luta de mundo versus eu. Pode ser humanidade versus eu, capitalismo versus eu, mas não é esse infinito de escolhas versus eu, finita.
Eu já teria perdido o jogo antes mesmo de começar se fosse esse o caso. E aí, não valeria a pena viver num jogo que eu controlo as regras, as cartas, as cordas, os bastões e sempre venço. É um jogo em que você controla só suas peças, num tabuleiro infinito, ou em fases infinitas. Você sequer vai vencer ou ver o tabuleiro todo. Você se retira do jogo antes que ele acabe. Somos cordas bem pequenas. Você só tem você, algumas pessoas e o que as coisas são HOJE.
Todo o resto é falta. Todo o resto é mundo.
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Ei, não vai ainda! Não posso controlar você, mas posso sugerir um texto que acho que você vai gostar…
Nossa! Bateu fundo do lado de cá!
muito bom.
Ana, sabe que me incomoda também o "cada escolha importa uma renúncia"? eu prefiro a frase de Raul, de que cada escolha guarda um destino.
E os destinos não escolhidos e imaginados só são o que são porque não os escolhemos. Gosto de pensar assim e me sentir mais leve com os caminhos traçados nessa vida.
um beijo.