Em defesa da lentidão
Tratado sobre a persistência da existência (e quem sabe da memória)
Não se ganha nada na pressa. Só uma corrida. Também não se aprende nada na pressa. Ok, talvez tenha algo, que eu não saiba e não aprenderei rápido o suficiente pra colocar nesse texto e dizer que sim, se aprende algo na pressa. Sei disso porque estou dois meses aprendendo o alfabeto de uma língua que nada tem a ver com o português e ainda erro vogais combinadas.
Sou a favor das pessoas irem devagar, de forma lenta e vagarosamente se isso quer dizer estudar um pouco, ou muito, todos os dias devagar como um ritmo cadente. Mas currículos, relatórios e calendários semestrais devem ser cumpridos. E nessa, pagam aqueles que não tem ritmo pra dançar mais rápido. Volta a sensação de falta.
Sou preguiçosa? Lenta demais? Burra? O que me falta que não pressa de viver, já que meu tempo é limitado? Mas já não temos pressa com tanta coisa?
Com vídeos, filmes rápidos, terminar calhamaços o mais rápido possível, comer, pegar metrô e tem gente que tem pressa até para gozar.
Aqui, estou em defesa da lentidão, mesmo que meus dedos digitem cada vez mais rápido palavras na folha em branco do Docs. Em defesa de demorar vinte anos para terminar a saga Em Busca do Tempo Perdido do Proust, que por si só nos faz perder tempo e buscá-lo na leitura, ao invés de tentar se consumir no processo da leitura e nem entendê-lo: nem a si ou ao tempo. O próprio autor demorou vinte anos para escrever sua obra única e máxima, porque eu deveria tão precocemente o ler?
Porquê tenho que aprender tão rapidamente o que uma criança aprende em cinco anos de fundamental? O que me falta se não tempo, eu sei, mas além disso? Conhecimento? Dinheiro para um curso, um professor particular de reforço ou não ter jornada dupla?
Em defesa de fazer no meu próprio tempo sem ser chamada de mole, devagar, mocoronga, preguiçosa, atrapalhada ou lerda. Em defesa de errar vagarosamente, do que me apressar tremendo de ansiedade que tanto me (nos) domina todos os dias.
Em defesa de ir quase parando, mas sem parar, porque a vida continua e infelizmente o capitalismo nos atropela. Em defesa de fazer os malditos e dificílimos exames de autoconsciência, que as páginas de Instagram juram que é como a facilidade de abrir os olhos ao acordar, uma meditação pela manhã num diário cheio de lettering. Em defesa de mandar os cadernos caros e fofos irem se fuder e encarar uma folha em branco como o que ela é: um vazio assustador existencial e ESSENCIAL para o que você ainda não sabe que não definiu sobre você, porque nem faz ideia de que esse vazio existe, essa pedra no meio do caminho, essa maldita pedra no caminho de todos nós que só Drummond notou com a precisão coerente, cadente, compassada e…Sem pressa.
Em defesa de comer devagar até a comida esfriar não porque supostamente comer rápido engorda, mas porque uso meu tempo não mastigado para olhar nos olhos de quem come comigo, apreciar o sabor da comida, conversar de algo legal, dar um risada que ecoa lentamente pelo ambiente.
Em defesa de fazer uma viagem negativa não só para pegar lugar, mas também pra olhar a movimentação desse deserto de concreto urbano, em que todo mundo usa fone pra não ouvir o outro de forma tão deprimente.
Em defesa de ficar calado em discussões pra lentamente ganhar a percepção de estar errado: ver a grande ficha cair e perceber que o mundo não liga pra você, pro seu tempo, pras suas razões e chateações pessoais. Colocar o grande óculos rosa da visão positiva e antes de pedir perdão, se perdoar, porque TODO MUNDO erra. Por que você não erraria? É sentar e ficar quieto pra devagarzinho notar que o sofismo alheio jamais ganharia ou perderia porque brigas não são uma competição, são ajustes e emparelhamento de nós dialogais que tinham se desencontrado.
Em defesa de acumular livros não lidos e torcer pro tempo de vida ser o suficiente pra metade deles, sem engolir livros ruins, mal escritos e curtos pra fazer número na internet.
Em defesa de colocar timers em redes sociais não para impedir o uso crônico, mas porque esse tempo é único e deve ser gasto lentamente e com valor em cada textinho porcaria lido por lá.
Em defesa de demorar pra mudar de ideia, de opinar numa forma burra tão pouco a pouco que a própria voz de tartaruga argumentativa vai te mostrar como você está errado. A pressa para opinar em tudo, inclusive aquilo que não nos diz respeito é o que nos faz falar tantas atrocidades sem pensar e, por supor que devemos defender ferozmente aquilo que já dissemos, por achar que não podemos mudar de ideia, se embolar rapidamente numa teia de ideias vexatórias.
Em defesa de cozinhar devagar, mesmo que seja pra comer mais tarde de domingo e sujar menos panelas porque lavou a louça no processo. Cozinhar também é arte, é terapia, processo individual e não requer pressa se não por conta de uma panela queimando cebola.
Em defesa de assistir desenho devagarinho, como quem acorda gripado e não vai para a aula, vendo Cocoricó enquanto toma Toddy enrolado no sofá da casa da avó.
Em defesa de se lembrar das coisas de família e REPETIR conversas, aqueles idealismos quase perversos de tão inocentes sobre outros tempos, aquele sabor de bolo repetido todo ano no aniversário de alguém importante, aquele saúde e tintim com as taças tilintando devagarinho pela mesa num silêncio absoluto e quase constrangedor, seguido da risada quando alguém se esquece que tem que dar um gole depois do brinde.
Em defesa de montar um quebra cabeça numa mesa não utilizável quando dá, pra ver em semanas a imagem se formar até que seu gato a derrube.
Em defesa de acordar lentamente, de forma meditativa, ainda que a depressão grite pra você voltar a dormir e a taquicardia diga: “Levante com pressa e pegue o metrô!” Em defesa do semi-sonho semi-acordado, desse momento de luz do banheiro iluminando o quarto azul escuro quase roxo, o céu que ainda não amanhece e o sonho embaçado pedindo atenção.
Em defesa de fazer a limpeza mensal/semestral/anual de livros ou da casa como se fosse uma visita ao museu, onde cada tampa reciclável, papel amarelado no lixo ou livro com pó seja delicadamente olhado.
Em defesa das últimas vezes. Não aquele papo estranho de aproveitar tudo rápida e inteiramente como se fosse a última, mas aquelas situações serenas em que você sabe com plenitude: isso não se repetirá e aproveita devagarzinho como quem come bolo com café na casa da amiga, deixando acabar.
Em defesa dos pontos finais, de nos enveredarmos por calhamaços brasileiros como a nossa Nonada, em sagas da cana de açúcar, esquemas de pirâmide feéricos e distopias desérticas que acabam. Que a gente não peça mais. Não leia mais, não procure mais, se a leitura deve gradualmente se desgastar depois do mais, necessitando o ponto final. Mas em defesa também de gastar o tempo supostamente precioso em trilogias, quintologias e sagas intermináveis se assim gostar.
Em defesa de sitcoms enormes, onde cada episódio é uma risada amarga seguida de lágrima pingada, aquela lágrima que fica presa no olho, os cílios como um guarda-chuva do sentimento que não sai por completo, até o próximo episódio na sexta feira seguinte.
Em defesa de orações devagar, sem Pai Nossos apressados ou pontos de umbanda tocados e cantados como raps do Eminem.
Em defesa de andar devagar no caminho pra casa se não houver perigo, de viajar sem pressa num lugar novo mesmo que isso não permita que você veja tudo. Em defesa de não sair da sala de cinema assim que o filme acaba e não pelas supostas cenas pós créditos que ninguém liga, mas pra se sentir parte da poltrona enquanto a experiência cinematográfica te suga.
Em suma, em defesa de levar a vida passo a passo, sem que tudo seja uma competição incessante de quem sobe mais degraus mais rápido, ou os pula com grandes pernas.
Minhas pernas são curtas, eu sou pequena. Não quero nada para o qual eu ainda não esteja pronta. Quero subir um degrau de cada vez mesmo que me sinta pra trás, me sinta menos, me sinta menor, desprotegida ou chore pelo sofrimento. Não aquela coisa neoliberal de que sofrimento nos faz crescer, mas trabalhar a consciência diária e lógica que não dá pra fazer tudo, então porque eu deveria fazer o que dá com pressa?
Olhar a escada abaixo com orgulho, sem esquecer o que já fiz, o que sou, o que me tornei, o que aprendi, com o que supostamente gastei meu tempo. Se preciso descer novamente, devagarinho uns degraus, pra depois subir de novo. Que verbo engraçado, gastar o tempo. Como se gasta algo que não é dinheiro? Como se desgasta algo não material?
Como se faz o uso de algo que não quer ser usado, que nos usa e nos domina?
Com muito medo de me arrepender de dizer isso, mas dizendo mesmo se um dia eu acordar com aquela ansiedade repetitiva e enérgica que me torna uma multifunção sem autoconsciência crítica de notar que tarefa estou fazendo e porquê:
Em defesa das coisas mundanas, do que é finito, temporal e provisório. Como nós. Vivemos tão devagarinho se formos pensar. São quase 10 anos de infância, mais 10 de adolescência. Mais uns 15 de vida jovem adulta. Depois dizem que é ladeira abaixo, que tudo escorre das suas mãos tão rápido em relação à juventude e que você é velho. Mas aí temos uns, sei lá, mais ou menos 42 anos de muita existência, palavras de ordem pela suposta maturidade adquirida e posteriormente o grande privilégio de lugares preferenciais.
Em defesa de textos longos, de vídeos maiores do que um minuto e meio, em defesa de tudo que demore uma vida toda, em defesa de ser um pouco preguiçoso, de ser ocioso, de ser meio mocorongo:
Em defesa da eternidade, agostiniana ou não.
é devagar que a gente consegue perceber melhor os detalhes. e os detalhes fazem toda a diferença.
Lindo texto, Ana! ✨
Nem sabia que precisava ler isso nessa tarde chuvosa!