Ele fazia tratamento dentário mensalmente, mas toda noite o remédio era o sangue na boca ao escovar. Passava as cerdas ultra macias de última geração na boca e seguia o comando interno de uma voz baixa da memória do dentista repetindo para deixar sangrar. E deixava ir embora. As vezes mantinha a boca aberta e deixava pingar na pia, as vezes cuspia e sentia o respingar na mão que segurava o cabo da escova. As vezes deixava o sangue e a água nadando na boca pra lembrar que estava vivo; sujo, limpo, denso e transparente. A mistura da pasta logo ia embora e só sobrava sangue, saliva e a água corrente. Sabia que algum dia pararia de sangrar e isso seria uma despedida do seu próprio gosto, daquele sabor de estar vivo, da intensidade material, das coisas carnais ao longo do dia, as coisas não ditas e engolidas, as coisas cuspidas. Não sabia quando seria a despedida do sangue, quando ele pararia de sair, se sairia por outro lugar, se teria que se machucar acidentalmente ou o quê fosse. Sabia que tinha todos os dentes na boca e isso supostamente o fazia mais gente que outras "gentes" aos olhos de uma gentinha, incluindo a dentista. Mas ter os dentes na boca não significava saber sorrir, muito menos se sentir vivo e era pra isso que o sangue servia.
Tem quem morde a própria língua, ou a bochecha e sente o sangue na boca. O gosto de ferro, o sabor de vermelho ácido velho, coisas que a gente não sabe se tem gosto até sentir; cores, químicos, adjetivos.
Toda vez a questão era se ele tinha algum problema sanguíneo, se podia doar sangue ou tinha problemas de coagulação.
Os exames estavam em dia, o sangue era o mesmo sangue normal de todos. E o que seria definir um sangue normal se não dizer que todos aqueles mais ácidos, mais vermelhos, mais velhos, mais densos, mais enferrujados não estão errados?
O sangue na boca é o de verdade soco de acordar e já ser definido, escovado, palitado, cerrado pelo outro. O resto é só o líquido corporal saindo de onde dá, transbordando pra fora das amarras de um maxilar cerrado, sendo quem é.
Quando parar de sangrar, você deixa de ser quem é, faz voltar a sangrar ou se reprime?
Ele vai mudar de dentista quando parar de sangrar.
que loucura sangrar para se sentir vivo!
fico pensando nos remédios que por vezes usamos que nos deixam inaptos pra deixar sangrar.... o conforto de saber que não está espalhando sangue por todo lado na vida contra a angústia de não conseguir sangrar nem quando é preciso fazer uma "sangria terapêutica" nas ocasiões certas.