Ando com vontade de morte. Às vezes tenho outras vontades: comidas específicas, nostalgias da infância. Filmes que gostava. Mas no geral é tudo sobre o desejo de morte, porque o passado é misturado com água e turva as lembranças, então parece tudo menos traumático do que foi. O presente tem sido insuportável, pois as dores voltaram mais fortes. Não as curei, só remediei para que passassem, elas ficaram ali escondidas. O futuro é incerto e odeio incertezas. Odeio mudanças.
Estou mudando demais. Então achei minha vontade. Minha justificativa geral. É que não há porque fazer nada, se tudo vai simplesmente acabar amanhã. Não exatamente amanhã, mas em algum amanhã. Não tem porque não comer algo gostoso agora e me sentir cada vez mais disforme no espelho depois, pois o mundo vai acabar mesmo.
Não tem porque se indignar com as duas guerras, (ou são mais?) se o mundo já vai acabar mesmo. Não tem porque se indignar com crime, limpar o pó dos livros que nunca lerei ou assistir algo novo, porque tudo vai acabar antes que eu possa terminar tudo. Assim, posso ficar em paz na cama. Se dormir bastante, posso ter a oportunidade, não, a chance!, de morrer dormindo quando tudo acabar. Uma música de vozes que gosto disse que todos sabem que o mundo vai acabar, até os objetos ficam silenciosamente tremendo esperando com medo seu fim material. Só que às vezes em algumas situações acho ou acharia melhor avisar.
Eu simplesmente aviso. Comento sem esboçar reação; o mundo vai acabar mesmo. E sorrio. Sinceramente é um alívio, eu já estava começando a ter as arestas entortadas e a tinta descamando de ter que me aguentar em pé fingindo que sei algo, que entendo algo, que sou adulta, sozinha, independente e funcional. Já estava quase desmontando e ia ser o meu fim do mundo próprio em vida se não tivessem tirado esse peso titânico de Atlas das minhas costas e digo:
O mundo vai acabar! Vai acabar!
Tem quem ache que quem grite é louco. Eu acho que eles são gentis. Estão avisando os que ainda fingem normalidade nas arestas. Atlas vai largar o mundo num buraco escuro e infinito de estrelas, em uma queda sem fim de seus braços. Ele cansou de segurar as pontas também. Cansou de brincar com um brinquedo velho e quebrado. Na verdade, nem era obrigação dele há alguns séculos. As pessoas nem lembram mais dele. Lembro porque é uma imagem que gosto. Um lugar comum que me encontro. Um espelho d'água.
Tanto faz se lembrarem dos mitos, os antigos e os podres políticos. Os antigos não são e nem serão cultuados por quem sobrar (se sobrar alguém) e os políticos não pagarão suas penas. Não sobrou pena alguma. Os pássaros também vão embora. Porque o mundo vai acabar e não vai ter para onde migrar. O mundo está acabando. Sorrio. Asfalto quente, quarto abafado, metrô lotado de pessoas com olhares vazios ganhando seus salários chochos para vidas que tentam ser menos do que o oco de seus chefes que segundo os filmes vão sobreviver pois eles têm salários gordos. Cheios, não chochos.
Lavar a louça era calmaria. Se tornou tormento. Aumenta a cada dia em um gasto de água que não vai levar a nada se não ao fim da vida humana na terra, onde Eva engolirá tudo de Gaia com a força do Mar de Poseidon, como uma filha de Afrodite.
Pode ser que seja hoje a minha justificativa geral para não viver, pois o medo que paralisa conforta. Sem se mexer, não há mudança. Mas no futuro será a certeza de todos, a loucura dos que querem viver, a resposta pros que querem matar ou então, morrer. Serão milhares de noites de crime como um filme de terror pelas ruas das cidades cheias de viciados em opioides. No futuro claro, agora nada disso acontece.
Serão abertos os portões da salvação pros fiéis que deram todo o décimo terceiro pra família do Pastor, eles serão salvos, arrebatados, porque o fim do mundo é só para aqueles que pecam e não há Deus nessa terra que não perdoe os pecados. Serão todos salvos, se deram o décimo terceiro daquele salário mixaria. Está confuso? Não importa, é o fim do mundo. Justificativa geral das nações militarizadas para explodir nações solitárias; eles tem que acabar pois são terroristas, trarão o fim do mundo.
O fim do mundo também será a soneca dos meus cinco gatos. Espero que eles já estejam descansando quando toda a areia do mundo for coberta pelos tsunamis dos meus recorrentes sonhos. Será o fim da minha samambaia amarelada, dos meus cactos que tanto replantei e tantas flores tiveram fora de época porque o clima estava propício. Será o fim das espadas de São Jorge. O dragão venceu. Será o fim da limpeza de casa, a que tanto tento pra agradar e me acomodar. Tudo virará poeira, "voltará ao pó". Sinceramente que frase chata, tudo virará sujeira!
Será o fim dos bibelôs, do álbum de família que nunca completei, dos anos de relacionamento em que tanto sou feliz, das coisas pelas quais agradeço antes de deitar. Será o fim dos livros que não abri, que não tive chance nem anos de vida para ler. Será o fim da mente que tanto forcei a estudar. Será o fim.
Justificativa geral e assustadoramente voraz, pronta pra engolir o resto pequeno de coragem que eu tinha. Tento afastar o pensamento quando começa a terapia. Mas o monstro do fim do calendário Maia, dos tornados, das enchentes no Sul e das secas na maior floresta do mundo me persegue. Mais que a ideia de morte em si. Mais que a pataquada tão querida na ficção de vírus e zumbis. Esse monstro incurável dentro de mim que diz que eu perdi. Ele venceu quando eu declarei em voz alta o que todo mundo sabia em silêncio: O mundo vai acabar.
E eu tenho medo de mudanças.