Dando embora aquilo que nunca foi
Um desabafo dolorido e autoconsciente sobre ideias que não se concretizam.
Esse não é o texto que eu disse que queria publicar. Mas pretendo ser breve, escrevo às 04: 56. Não consigo dormir pois espero um e-mail, que provavelmente vai vir depois das 13h e me fazer chorar. Então, aproveitei pra fazer a checagem dos comentários das duas revisoras do meu romance, que vai sair esse ano. Com isso me veio uma epifania, que provavelmente já falei por aqui de outras maneiras, como no texto da banda de uma batida só, mas não seria anafórico se não fosse repetitivo.
Relendo meu romance eu vejo como amadureci. Os contos que andei planejando, o Hugo Pirinha e a Newsletter me ajudaram muito a intensificar qualidades que gosto na minha prosa. Eu era nova quando tive a ideia desse romance, estava no meio da pandemia e resgatei a ideia fichada de um personagem de 2016, inspirado em uma (ex)amiga bem interessante minha. Tive problemas na inserção desse personagem no romance, porque escrevi tudo antes da história dele e depois não sabia onde colocar esse milho no resto do recheio. Achei, até agora pouco, que teria milhares de histórias para contar sobre essa escola fictícia que criei inspirada nas experiências doidas e pilares do Eu que vivi no meu ensino médio. Acontece que o romance, depois de ter sido terminado, foi largado sem uma reescrita porque essa é uma das minhas maiores dificuldades atuais como autora. É difícil reler o que fiz sem querer regurgitar. Ou era.
Depois, ano passado, o romance se tornou um projeto editorial independente com minha revisora que ia trabalhar em toda a editoração. Contratamos capistas, desenhistas, diagramadores, mais revisores. Eu achei que estaria por dentro dos moldes guerreiros de ser escritor: publicar um livro.
Porque em um país com mercado tão desvalorizado e a arte de ler e financiar/apoiar amigos tão escassa, ser escritor é ter seu livro em mãos, com capa de brochura, selo de editora, resenha paga e marcador de brinde. Qualquer coisa antes disso te deixa em um estado de hiato, prestes a perder a carteirinha literária, como quando bissexuais namoram por muito tempo pessoas de outro sexo. Eu me animei, me vislumbrei e, segui durante um ano inteiro jurando que não iria odiar o que escrevi futuramente.
Pois bem, eu não odiei. Ele é bom, melhor que muita porcaria que escrevi e ansiava publicar pela gana, mas não é maravilhoso, perfeito obra prima do novo cânone mundial. Não chegaria nem perto. Para muitos, já seria eliminado de critérios por ser um livro escrito por uma jovem para um público jovem. A começar, tem características de romances epistolares modernos, com mensagens e redes sociais. Também é apressado, dialogal, como os jovens gostam hoje em dia, mas minha maturidade adquirida como escritora de lá para cá gostaria de lapidar e fazer funcionar melhor em ritmo. Mas não dá, é um projeto conjunto e, tudo bem. Ele tem esse personagem apressado meio solto, as frases longas aliteradas, afobadas, algo meu (pessoa) e da minha prosa, mas que ainda não chegou aonde quero. Meu namorado chama elas de gigantus anensis de tão longas e sem vírgulas que são.
A história tem potencial e acredito que muitos jovens irão gostar, os defeitos são mais sobre meu potencial como escritora hoje, do que a história em si. A história estava pronta. Eu não. Mas agora já está escrito. A Ana jovem iria gostar, mas a Ana de agora é crítica, amargurada, com pouca autoestima e tende a sentir vergonha de dizer que escreve em alguns ambientes. Torço pra alguns amigos gostarem, os familiares elogiarem por cima (nenhum deles jamais leu algo meu), pro meu namorado não odiar. Ele é crítico, mas tem bom coração e as melhores coisas que já escrevi passaram pelas mãos e olhos dele.
Quando publiquei meu livro de poesia eu tinha muito mais falta de vergonha na cara. Depois que ele deu errado pelo golpe que recebi da editora, quis insistir no projeto até a chegada desse ano, quando olhei para as minhas metas e quem eu era e percebi que ele não se encaixava mais em quem eu quero ser. É um fato duro, principalmente para minha Ana adolescente interior. Pode mudar futuramente, mas hoje: desisti de Pote de Lágrimas. Qualquer um que quiser ver minha estrada de lá pra cá pode tentar comprá-lo, avaliar mal se ele merecer (com a régua crítica de que foi escrito por uma menina de 15-17 anos) e depois vir avaliando outros textos meus.
Vale o mesmo pra esse romance, quando ele sair. Minha vida atual não me permite a pressa e o investimento de escrever todos os dias, estudar escrita sempre, me aprimorar e me publicar na mesma velocidade. De ficar relendo as porcarias que escrevo. De ficar reescrevendo sendo que tenho outras coisas pra escrever. E fazer. Minha vida atual mal me permite sentar e escrever pra cá, mas me esforço, recebendo broncas familiares e sofrendo muito com cortes de laços. Portanto, quando esse novo romance sair a régua de avaliação deve ser a de uma menina saída do ensino médio, ansiando a maturidade, revivendo memórias, ainda crua, apesar de muitas ideias. Já não sou mais a Ana desse romance e isso não significa que eu o odeie.
Só significa que ele não é minha obra prima. Talvez ela nunca chegue, demore. Talvez eu nunca tenha uma segundo minhas próprias opiniões já que sou dura comigo mesma e isso não tende a mudar. Talvez ela chegue pra uns e para outros não. Talvez seja um ótimo livro para algumas pessoas. Como Pote de Lágrimas, não vou fingir que ele não existiu (como brinco) se não der certo. Vou deixar ele lá e bola pra frente. Não acredito em “retiradas de livros e republicações repaginadas”, isso é new criticism demais pra mim. Não quero reescrever e apagar aquilo que fui. Se errei está lá, vai ficar marcado para posteridade. A frase da Ana Suy ressoa em mim cada vez mais enquanto escrevo isso: sou pequena e isso me dá alívio.
Também, com o fim da (re)leitura do livro, chego a conclusão que terão muitas histórias que eu terei que largar e, não me farão falta, porque são nascimentos fantasmas, histórias nunca escritas, ideias que tive quando era uma pessoa que não existe mais. Ideias não são livros, tê-las não me faz escritora. Eu já sou uma. Talvez não exista a história da pintora, a da moça cadeirante e do trisal na escola. Talvez a saga do detetive que criei ouvindo Não Existe Amor em SP nunca saia da minha cabeça. O conto de Natal, o livro de poemas, já que sou péssima poeta e vejo hoje.
Talvez minha fantasia distópica e os romances de época europeus com piratas e duquesas escondidos atrás de pseudônimos também não. Quero criar uma marca, como grandes escritores. Uma assinatura. Com isso vem as desistências das ideias infrutíferas, que muito divagam no documento em branco no meu Word e em nada saem da ponta dos dedos. Quero ter minha voz, minha prosa, algo marcante, irreconhecível, ser lida, recomendada, criticada, ensaios. Desejos de grandeza enquanto solto de minhas mãos minhas mais marcantes magias infantis, porque até mesmo parece ser uma pequena grande entre os grandes é necessário a condição de assimilar a realidade. Meu livro de contos brasileiros vai sair, com a voz cheia de referências mesmo, ainda que isso amargue a boca nostágilca de alguns amantes de 30. Meu romance sobre a natureza também. Minhas histórias sobre sinas de vidas, os medos todos, sairão. Do seu jeito, no seu tempo, mesmo que eu nunca ganhe um prêmio ou seja citada como gênia.
Tudo bem esse ser o único livro nessa escola inventada, apesar de eu ter tido milhares de ideias e me animado por tanto tempo. Posso criar contos um dia, talvez, tentar. Hoje, não posso nem quero escrever essas coisas. Meu tempo é escasso e meu coração é de outras coisas, mas sempre será da escrita, só que escolhendo o que contar. Tudo bem o livro ser querido entre o público e massacrado entre meus colegas da faculdade. Tudo bem eu ter vergonha de não ter publicado e mostrado meu melhor mesmo sabendo que poderia e que sou melhor hoje. Continuo tentando.
É difícil abrir mão de ideias, estou sofrendo desde já com a possibilidade de largar mão histórias que planejo faz tempo. Mas acredito que é uma das coisas que está fazendo parte do meu amadurecimento geral e, elas não são eternas. Posso mudar de ideia, voltar a uma vontade antiga, uma história adormecida, um projeto leve, sentir vontade de me divertir, de suprir essa tarefa que criei da lista. Mas quero me libertar desses extensos projetos de uma vida de escrita que nem sei se terei, já que as coisas mudam tanto.
O romance sairá, vou torcer para alguns leitores curiosos daqui procurarem, algo neles se perpetuarem em vocês a ponto de vocalizarem e, os feedbacks que chegarem a mim (vou evitar ficar caçando como faço), serem os alimentos para nutrir mais crescimento no que já faço hoje, como a Anaforismos que tanto tem me alegrado.
Ativa no que escrevo, desapegada de ideias que não se materializam.
Em partes sinto alívio e uma sensação gostosa nos ombros, em outras me vem o terror de desistir de ideias promissoras, de ver um dia elas nascerem sob as mãos de pessoas mais talentosas, o medo da desistência, do dia a dia me engolir e de uma obra prima, não, uma obra boa, nunca vir. Ando muito triste com pequenas coisas ao redor, mas feliz com coisas interiores. Como pode? Nunca tinha me ocorrido. Me sinto autoconsciente demais ao escrever tudo isso, mas pode ser o sono, amanhã nada fará sentido e sentirei vergonha disso também.
Somos produtos do que não vivemos, da nossa Anti Biblioteca do Eco, dos livros que temos medo e não lemos, do medo de não fazer direito, por isso não fazer nunca, das músicas que preferimos ouvir depois, dos filmes que guardamos pra quando estivermos na vibe, de tudo que não foi, não aconteceu, não fomos, dos presentes que não ganhamos, dos incentivos e afetos que não recebemos.
Como minha colagem no bullet journal mostrava no chat dos inscritos por aqui: vou com medo mesmo. Esse medo que me aflige, me engole, paralisa e toma todos os meus sonhos. É minha âncora, que tenho, com uma força consciente que eu nem sabia que tinha, puxado alguns dias, pra poder navegar, só um pouquinho.
De pouquinho em pouquinho, de palavra em palavra. De página em página. De leitor em leitor. Sem desejos megalomaníacos. As ideias sempre estarão guardadas em mim, sem medo nenhum pra me roubar. Posso vivê-la em meus sonhos de olhos abertos, meus banhos demorados, minhas músicas instrumentais. Ainda que nada que eu sonhe se concretize em escrita, serei uma escritora feliz por ter tentado sonhar o que a minha criança me doou e o que a eu adulta fabulou antes de deitar. Que doido, escrevi que sou adulta. Está aí uma ideia concreta cheia de medo, um livro já publicado, talvez obra prima, eu mesma.
ATUALIZAÇÃO DIA 06/01:
Meu namorado terminou hoje a leitura, revisão e preparação do romance. Disse que sou da prosa, do romance, não da poesia. Que foi a melhor coisa que escrevi. Deu risadas. Gostou de personagens. Me criticou por períodos longos, sem vírgula, puxou minha orelha pelo meu desânimo com um projeto tão lindo. Lavou a insegurança artística da minha alma (por um tempo, mas já basta). É melhor e maior que qualquer Jabuti que eu possa (nunca) ganhar.
Ana, se joga! É preciso muita coragem para jogar nossas ideias, nossa escrita pelo mundo. Acredito que seja esse trajeto que vá construir a grande escritora! ✨
Acho que o mais importante nesse processo todo é: viver um dia de cada vez, e também, permanecer fiel a quem você e!!! Sei que é muito difícil não deixar o medo te paralisar porque ainda somos jovens e temos tantas inseguranças... Mas no final do dia, a sua essência é maior que isso tudo ❤️