Havia uma mosca na sopa. Ela caiu no caldo. Eu observando meu apetite se esvaindo da mesma forma que a vida se esvaia do inseto. Enquanto ela submergiu no líquido quente, envolta como um bebê em um líquido amniótico, suas perninhas finas foram tremelicando ao salgado fervor da morte lenta.
Quanto mais eu a encarava, mais sentia meu poder crescer e, no entanto, a fome ia na direção contrária. Meu apetite se perdeu no caminho entre a cozinha e a mesa, mas meu senso de consciência quanto ao topo da pirâmide aumentou.
Esbocei um riso — ora, tem uma mosca na minha sopa, uma cara de bravo e um grito pro garçom seria o suficiente, mas isso!? —, um sorriso semelhante ao de Narciso, pois via meu reflexo intacto de vivo mamífero na sopa. Tanto faz a fome, uma necessidade primária, eu estava satisfeito com outra coisa.
Eu prestava atenção ao vapor que saia, esquentando o rosto de minha cabeça pensante, — de meu cérebro anos luz a frente — lembrando daquele pífio mês de minha vida, muito maior do que a vida do inseto. Sim, aquele inseto insignificante, zombeteiro e sujo que ousou cruzar o meu cotidiano e cair na minha comida.
Tão nojenta em morte como em vida, o pequeno corpo do bichinho outrora ovo e larva me encarava com seus olhos virados pra água fervente. Saiu de um ovo como quem nasce, rastejou como um bebê engatinha.
Eu, sucessor dos hominídeos de 7 milhões de anos atrás, sem precisar caçar uma mosca sequer, que só queria tomar minha sopa e dar seguimento ao legado de tantos descendentes poderosos, agora estava ali, controlando e encarando o pós-morte de uma mosca-doméstica.
Ela, doméstica, e eu, domesticado, querendo voltar pra casa depois daquele terrível incidente-jantar. Encarei meus dedos grandes e a casca sem vida nojenta na sopa, que nem um centímetro chegava a ter. Eu esmagaria ela com dois dedos se pudesse pegá-la no ar. Pensei que aquela criaturinha vil já tinha estado debaixo da terra — perto do lixo e coisas decompostas — se alimentando de tudo que é sobra de vida.
Lá estava eu, abaixando meus olhos cansados da realidade ao meu redor para encará-la. A luz do restaurante batendo na sopa fez meu reflexo se misturar com o da mosca. Os olhos alaranjados, com sua visão de 250 frames por segundo, me mostraram coisas que eu não percebi em mim naquele tempo finito da sopa à mesa. A raiva dos outros, a sensação de superioridade para suprir o resto, os sapos que engoli, as coisas que faço sem prazer, o sentimento de viver ao léu.
Naquele momento, abaixei a colher que segurava, fechei a expressão que havia aberto, e entendi porque todos chamam o gerente no lugar de encarar a sopa. Acontece que eu estava na minha pausa. Eu era o gerente.
Esse texto é de 2022. Ia ser enviado para uma revista de micro-contos e eu perdi a data. Não sei exatamente se gosto dele agora, mas sei que gostei por muito tempo. Ainda me sentia ressentida por não tê-lo enviado pro concurso. Então decidi postar aqui no Análogos, principalmente porque imagino que ir intercalando entre as sessões seja mais interessante do que meus choramingos na Anábase.
Em falar nisso, sobre as seções, essa semana decidi trazer dois textos, simplesmente porque quero. Na realidade, como é fim do ano, gostaria de mostrar o que produzi e também inaugurar a seção de Anatomia com um ensaio-resenha que fiz para uma disciplina na USP e foi muito bem elogiada pelo professor, escritor e diretor. Para não jogar louros demais, você pode ler a coluna dele para a Folha aqui. O texto sairá no Domingo (10/12) e será sobre o filme nacional Marte Um, dando o nome de antemão para os assinantes que leem até aqui, rs. Se quiser ver o filme antes de ler o que tenho a dizer, você pode alugar aqui ou ver no Telecine Cult no dia seguinte, dia 11/12 às 17:45h.
Mais pro meio do nosso finado mês, o último na corrida do longo e calorento ano de 2023, vou lançar minha “Ceia de Natal/Árvore do Papai Noel” ou algo com um título assim. Ainda não sei se na sessão Anábase ou na isolada (e ainda sem postagens) “É gosto, pessoal”, mas sei que será um apanhado de melhores e piores livros, filmes e séries. Avaliando tudo do meu jeito, com nota, sem nota, com comentários e querendo a opinião e recomendação dos leitores.
Quero mostrar um pouco do planejamento pessoal e profissional de leitura compartilhado com vocês, tornar prazeroso e não utilitário e obrigatório, onde até nisso o lazer tem que ser produtivo.
Sei que falando assim os nomes atoa, fica parecendo que sou doida, mas é só um lembrete de que a Newsletter no PC tem divisões por seções e que o mobile ainda não integrou isso, que além de organizado e mais bonito, é mais funcional a depender do que se quer ler. Enfim, fica aí mais um registro de apelo meu para ver se a Equipe Substack adiciona isso.
Para terminar, meu grande agradecimento aos leitores e novos assinantes do Boletim Anaforismos que chegaram até mim pelo texto do Mogli. Um acalanto ver que outras pessoas concordam comigo sobre o comportamento de desinteresse atual nas relações sociais. Espero que continuem aqui e tenham boas leituras!
Essas são as novidades de hoje, espero que gostem!