Tem um trecho, no final do livro de horror sci-fi clássico Jurassic Park, em que o personagem matemático (em suma, um filósofo), Ian Malcom, fala sobre o mundo. Terminei o livro recentemente e isso me marcou a ponto de lágrimas rolarem nos meus olhos. Não só pelo contexto inserido meio a trama de animais geneticamente modificados serem trazidos de volta a vida milhões de séculos depois contra a vontade deles, tratados como tudo, menos animais, mas porque Michael Crichton ainda fala conosco de lá pra cá, o presente, diversas vezes durante o livro:
“Deixe-me lhe contar sobre o nosso planeta — disse ele. — Nosso planeta tem 4,5 bilhões de anos. Existe vida neste planeta por quase esse tempo todo. Três ponto oito bilhões de anos. A primeira, as bactérias. E, mais tarde, os primeiros animais multicelulares, depois as primeiras criaturas complexas, no mar, na terra. E então as grandes e abrangentes eras dos animais: os anfíbios, os dinossauros, os mamíferos, cada qual durando milhões e milhões de anos. Grandes dinastias de criaturas nascendo, florescendo e morrendo. Tudo isso acontece com um pano de fundo de reviravoltas contínuas e violentas, cordilheiras de montanhas aparecendo e sendo erodidas, erupções vulcânicas, oceanos nascendo e sumindo, continentes inteiros se movendo…Mudança infinita, constante e violenta…Até mesmo hoje, o grande acidente geográfico do planeta vem de dois grandes continentes colidindo, dobrando-se para formar a cordilheira do Himalaia ao longo de milhões de anos. Durante esse período, o planeta sobreviveu a tudo. Com certeza vai sobreviver a nós. [...] Vamos supor que tivemos um acidente feio, todas as plantas e animais morreram, e a Terra está estalando de quente por mais ou menos 100 mil anos. A vida vai sobreviver em algum lugar… Sob o solo, ou talvez congelada no gelo ártico. E depois de todos esses anos, quando o planeta não for mais inóspito, a vida começaria a se espalhar novamente pelo planeta. O processo evolucionário começaria de novo. Poderia levar alguns bilhões de anos para a vida alcançar a variedade atual. E é claro, seria tudo muito diferente do que é agora. Mas a Terra vai sobreviver a nossa estupidez. Apenas nós — disse Malcom — achamos que não sobreviveria.”
Para entender minha repetição anafórica, o quanto bato na tecla do tema para aliviar a mim mesma: abro meu Instagram e vejo a notícia de que a temperatura da terra está maior do que na era PRÉ Revolução Industrial. Me assusta ser a pré… Saio e entro no Twitter, descubro que pontos de calor na Amazônia, devido a exploração exacerbada do agronegócio podem fazer com que os danos sejam irreversíveis até 2050. No outro post do Insta, a timeline infinita me leva ao post dizendo que as crises climáticas JÁ estão afetando produções em larga escala, fazendo com que o sistema predatório afete as próprias regiões onde as coisas são produzidas. A tal “célula de revolvimento meridional do Atlântico”, que há pouco eu nem sabia que existia (e nem sei se entendi), pode passar a um ponto de inflexão, dando vasão a um colapso gelado. Vejo um post engraçadinho e descubro que dinossauros nunca pisaram em grama. Não existia grama na era deles. A grama fofa era terra puída.
Ouço minha mãe reclamando do preço do azeite. Na Televisão explicam que a Espanha, a líder mundial na produção de azeite, teve uma colheita abaixo do normal pelo segundo ano consecutivo. A produção do Brasil não consegue entregar o nível de consumo do país e os preços se elevam. Um vídeo de quase 600 jatinhos privados decolando de Las Vegas após o Super Bowl se espalha pela internet com mais de 65 milhões de visualizações. As piadas não param de chegar: “Eles indo e voltando pro estádio de jatinho e eu tomando milkshake com canudo de papel que desmancha na boca pra salvar o meio ambiente”, ou então, “eu tomando banho de 5 minutos para que a Taylor Swift possa andar de jatinho!”. Olho ao redor e tudo me desespera.
Penso em largar os panos. Parar de escrever. Não vai ter papel pra imprimir o que escrevo. Não vai ter árvore pra isso, celulose, papel reciclado. Pior, não vai ter gente pra me ler. Penso no futuro. Qual? No trabalho, em continuar dia após dia pagando conta, comendo bem, priorizando coisas saudáveis, separando lixo, pois o caminhão dos recicláveis vem toda Terça-feira. Penso no calor e como isso vai afetar primeiro quem não tem nada. Quem não tem ventilador, esse que já não é o suficiente. Quem não tem ar condicionado, quem mal vai ter como sustentar a conta de água (que vai faltar) e a energia (que vai subir). Penso nas enchentes. Nas secas. Nos litorais tomados pouco a pouco. Penso nos desertos alimentares agravados. Em alimentos que se tornarão luxos, como se já não fossem, como o azeite, o tomate, o morango, as uvas, o cacau. Penso que tudo vai acabar em choro e sem vela, aos pouquinhos.
Penso na Baby do Brasil com seu discurso perigoso da Teologia do Domínio e me vem o rosto jovem de Fernanda Torres dizendo que tem preconceito contra crentes. Lembro das piadas chamando o Brasil de Evangelistão. Penso que talvez eu, pessoalmente, não tenha muita fé em nada em um país onde o pastor te pede dinheiro e quando você precisa, ele te diz “peça a Deus”. Um Deus movido a dinheiro. Lembro das guerras tomando o mundo, dos EUA tirando responsabilidade das costas e de uma legião de chefes departamentais de repúblicas, supostamente democráticas, pedindo a opinião de outros sobre algo que está do outro lado do mundo. Ninguém pode fazer nada além de assinar documentos de paz que, na prática, em nada resolvem a vida de mães e crianças inocentes em hospitais. Penso nas catástrofes. Penso nas pessoas que dizem que quem gosta, torce ou espera ou diz que acontecerá um apocalipse, um fim do mundo, uma crise climática global com um caráter meio 2012 é fetichista da dor alheia.
Me coloco no lugar da dúvida: estou torcendo por um fim desastroso? Não. Um fim iminente, onde não sairá ninguém (duvido até mesmo dos ricos de jatinhos e seus bunkers e foguetes). Não torço, mas vejo que ele vem sem torcida mesmo. Vem sem ser chamado, apresentado, como muitas vezes veio, porque ele sim é anfitrião desta casa, nós é que somos desconhecidos. Visitantes. Não quero ver gente miserável e morrendo, não tenho prazer em saber que haverão gerações que não suportarão o Sol. Que não saberão o sabor de um morango. Sabendo que, a um passo em falso na economia, posso ser eu a pessoa nesses cenários malditos. Não tenho dinheiro guardado, não tenho um bunker, nem sequer passaporte. Não tenho porte físico de galã de filme de ação, ou aptidões sobrevivencialistas. Mal sei acender um fogão só com o fósforo, por medo/trauma do fogo. Não me orgulho.
Não me orgulho de imaginar os cenários iminentes, não me deleito. Mas o admito. Não o nego. Fico sendo a chata que quebra o clima, que faz uma piada infame, ou o assunto do fim sobre a mesa. Sou, nesse sentido, uma neta que Saramago beija na testa:
“eu sou a mais pessimista das criaturas que vivem sobre a terra. Olhando o mundo, não há razão nenhuma para que sejamos otimistas. Quer dizer, se olharmos pra frente, para essa cidade, para o mundo, se levarmos em conta a quantidade de sofrimento, de miséria e de tudo quanto é negativo, se percebemos que o homem não resolveu até hoje nenhum dos problemas essenciais da humanidade, pelo contrário, está a acrescentar problemas velhos, que herdou problemas novos, então não há razão para sermos otimistas.”
Rolo o feed do Twitter, o novo X, a empresa que era uma bolha, que foi destruída por um homem que diz que quer pegar CO2 para transformar em combustível enquanto fez mais de 1.300 viagens em 2022 e emitiu 1.900t de gases poluentes. Ali, descubro um termo para o que sinto: eco-ansiedade. Tem termo até pra isso! Foto gerada por IA de cidades submersas. Eu odeio a IA, que vai tirar empregos, que tem supostamente servidores físicos que esquentam muito o planeta e gastam bilhões por ano para fazer coisas sem alma. Not my point. Não é o momento de gritar com a máquina. Ainda que eu esteja gritando no vazio contra uma. A máquina de moer o mundo: o capitalismo. A posição de qualquer um perante o fim também é política. Isso incomoda, sim. Irrita. A posição das pessoas de ignorar, de reclamar dos preços, culpar políticos sem olhar o panorama geral, sem ter medo, incomoda, sim. De não querer falar de política, de isentar todo assunto. Irrita.
Sou pessimista. Me chame de fetichista se quiser. Mas não consigo não projetar cenários horríveis, nada cinematográficos e lentamente dolorosos.
Não consigo não esconder que argumentos como culpa do capitalismo ou “bora esquecer de se aposentar e só viver” são vagos, são sonhos de utopia sem posição de luta, são ralos pro buraco do hedonismo, numa vibe cena da cobertura de Don’t Look Up. E sim, eu gosto do filme, apesar dele ser bem quadrado, literal, didático, quase uma apresentação de Power Point muito estadunidense pedindo socorro. Sim, ainda teve gente pra criticar o filme por ele ser supostamente esquerdista e cirandeiro (o tal woke que usam pra tudo) como se querer deixar um mundo para as próximas gerações (que tanto imploram para mulheres terem).
Não consigo pensar que somos estúpidos, que se organizar coletivamente é uma luta falha, que o capitalismo é uma cobra que engole o próprio rabo fadada ao fim. Que continuaremos nossa existência: limpar a casa, tomar muito café, trabalhar, pagar contas, usar dinheiro imaginário, olhar um quadradinho de lítio por horas, chorar, tomar banho, aprender uma nova língua, tentar visitar uma outra terra que não a sua, ou uma extensão da sua, ter família, pagar parcelas da geladeira, ir no dentista, resolver conflitos, brigar, se magoar, pertencer, acreditar em um Deus, ter rancores, ter memórias, escrever algo bom e não mostrar por vergonha, escrever algo merda, falar bosta na internet, se construir, desconstruir, reformar a casa, se mudar, adotar um gato, enterrar um parente, comemorar datas com chocolates, perus, presentes, champagnes, bolos. E a terra vai continuar.
Sei que falo muito disso porque minha ansiedade grita comigo a todo momento, sobre o futuro, sobre o porquê continuar se está tudo fadado ao fim.
Do tipo: pra quem você vai escrever, se não sobrará ninguém para te ler no futuro? Fico caçando motivos pra lembrar o porquê escrevo: porque amo, porque me sinto viva, porque fico engasgada, porque me faz respirar, porque se não escrever me sinto um vegetal, porque quero contar algo que suponho ser importante, edificante, interessante. Talvez não. Talvez seja o clichê de deixar uma marca no mundo. Ego. Um mundo que não restará quando eu deixar de existir e depois disso, muito depois disso, será outro mundo. “Porque tudo parece diferente do outro lado”, Ian Malcom diz quase no final do livro. Debati com meu namorado sobre o que ele quis dizer. Foi literal? Foi sobre os dinossauros? Sobre a vida? Sobre a morte? Me peguei empolgada com as camadas de interpretação de um romance científico, o qual há pouco no gênero literário era reduzido a um livro bobo de dinossauro para criança. O livro acabou e continuamos falando dos cenários, das cenas, das tensões, do horror.
A vida continua. “A vida dá um jeito”. Eu não sei como a vida dará um jeito, mas a minha vai continuar. Vai seguir com esse mundo que me deu o presente de prosseguir com ele. Com esse projeto de continentes em colisão, de uma era que lentamente, corre como uma boia para um despenhadeiro, uma cachoeira fervente.
Tem chão depois. Ele pode não ser lindo como vemos com nossos dois olhinhos. Pode não ter maravilhas antigas e modernas, pode não ter praias com águas transparentes, montanhas com flocos de neve, chapadas, florestas gigantes, rios que são as veias de um continente, animais fofos, predadores com pintas, peixes cheios de dentes, cantos de pássaros. Mas tem chão depois. Morrer eu vou mesmo. Vamos todos. Mas é um trabalho de todo dia tentar fazer o pesadelo de não ter mundo que segure meus ossos se transformar numa ideia quase utópica, idílica, sem sistemas, ricos em cápsulas ou lutas por gasolina. Mas talvez tenha grama. Ou neve.
Torço em segredo, como uma curiosa criança (interior) que cochicha na orelha de adulto: que Saramago esteja errado, só dessa vez. Que possamos ser otimistas com o fim. Sou a favor de que as coisas acabem. Livros, séries (mesmo as sitcoms), bolos, a vida. Esses texto, talvez um dia, minhas repetições temáticas. Por que seria diferente com esse mundo que conhecemos?
Ana, adorei o texto. Acredito que o modelo de vida ocidental está fadado ao fim mesmo, não é de jeite nenhum sustentável. A gente precisa ouvir aquelas pessoas que promovem um estilo de vida atento aos demais seres que vivem na Terra. Inclusive que consideram a Terra como um organismo vivo.
Tenho esperança.
Sou uma sonhadora.
Beijos.
Que texto ! Compartilho da revolta e gostaria que pelo menos tivemos um versão de fim tipo Walking Dead.