Depois de chorar no colo do amado, notou que não conseguia mais falar. Tinha acabado de falar pra ele sobre sua dificuldade de escolher as palavras num momento difícil: uma briga, uma mágoa, uma apresentação, ao falar com professores, ao escrever um poema, ao terminar uma tese. Não conseguia achar as palavras e se odiava por isso. Quando era criança e espelhava as letras se sentia muito mais confortável, ao ser chamada de grilo falante nas reuniões de família, ao ser chamada para contar histórias, ler seus poeminhas, contar piadas. Falava até não ter fôlego.
Quanto mais foi crescendo e lendo, mais foi ficando calada. Gaguejava, tremia, o coração ia na garganta ao falar com alguém. A coragem bocuda que tinha foi dando lugar ao medo ambicioso.
Até o dia que perdeu o controle e as palavras não saíram. Não tinha mais nada que pudesse fazer. Não conseguia abrir a boca, não conseguia pegar uma caneta, escrever num caderno, em um documento do Word. Estava feito. O silêncio era o vazio. Não escrevia fazia meses e, foi quando sem pensar como iria verbalizar, só deixando sair, para seu amado, aquele que entendia o léxico próprio e a sintaxe única, que perdeu a voz. Foi num grito de choro engasgado. A última tentativa de um medo, porque a palavra que não saía era uma aposta para um futuro nada carinhoso.
Se a forma é uma mentira da auto exigência, seu silêncio ausente era o disforme de uma verdade.
Experimentou escrever como se ninguém fosse ler, mas não saiu uma só palavra. Nenhuma sequer. Um romance, um conto, fingindo escrever uma notícia de jornal, uma coluna, uma anedota!
Poderia ser algum texto o seu modo de voltar?
Não as origens falantes, mas um jeito de contar?
Dizia: tente, não diga que o que vier está bom. Estude e você verá, vai escrever, não vai faltar nada, nem voz, nem palavras. Um parágrafo, leia. Uma cena, rascunhe. Até mesmo nada: só sustente a vontade de falar algo na cabeça, como um lugar secreto.
Diziam: Você é melhor do que acha, ninguém sabe como falar direito da primeira vez.
Mas retumbavam as escolhas de palavras mais negativas que os outros diziam sobre si, incluindo ela mesma, junto do conselho do objeto como fugidio, vindo de um mestre das palavras. Ele revelou sentir medo, disse que cada vez mais era difícil escrever algo, era difícil escolher as palavras e que você se tornava mais exigente a medida que reconhecia seu próprio valor sem saber.
Pra ela, aquilo não era valor algum. Era falta dele.
Tentou se dar permissão pra escrever mal. Qualquer porcaria. Mas não conseguia, faltava algo pra ir, com coragem, ao método infalível, ao plano minimamente bom pra prosseguir até o ótimo.
Tentava fingir que ia contar uma fofoca para alguém, para ver se a voz saía. Mas não tinha sobrado nenhuma palavra dentro dela. Todas tinham escapado, inclusive o ânimo.
Sabia que tinham ensinado ela a analisar palavras, mas analisar é diferente de escolher e de escrever e de falar e de verbalizar e de escutar e de ler e de reescrever e de refazer e de editar e de apagar e de tentar.
Sabia que a comparação é um veneno que a exaustão de sua mudez alimentava. Que ninguém que ela admirava e com quem se comparava escapou do medo delas, as palavras. Quando não estavam a torturando, estavam saindo como um vômito pela boca. Quando não queriam ser postas na folha de qualquer jeito, queriam ser meticulosamente pensadas, como se valessem sua vida.
Sabia que era fã afoita da mudança de ideia, mas nunca de mudar de rotina. Sabia que no futuro, poderia voltar a criar, a falar, a escrever. Mas por enquanto estava muda. Chorava na cama sem que o som saísse da garganta, apenas o som da lágrima no tecido roxo de algodão do travesseiro e o tique-taque do relógio amarelo. Toda noite era assim. Sem voz, sem incomodar, sem se repetir, sem reelaborar.
Tinha perdido a linguagem de si. Tinha perdido a língua. A literal, ou metafórica, a que anima a voz. E com a perda da linguagem, perdeu seu principal amor pela comunicação. Perdeu o princípio de todas as coisas, de todas as palavras, dos significados, do mundo.
Sabia, porque tinha lido, como sabia muitas outras coisas que não sabia que sabia porque nunca reparava no que passava a saber, que palavras nasciam, envelheciam e morriam como os humanos, através dos séculos. Mas nunca tinha visto alguém que fizesse com que elas morressem dentro de si e fossem vomitadas. Alguém que ficassem sem elas.
Ficou de luto por elas. Luto pela morte, pelo abandono. Pela ilusão de que elas eram fáceis de controlar, que mutáveis como eram, eram só serem usadas. Sempre que pensava que não conseguia mais aguentar: nem a ausência delas nem as tentativas recorrentes de retorno, chorava. Chorava como se quisesse um abraço de um mundo que sempre a negou tudo, inclusive ouvindo as palavras.
Achava que falar muito, bem, ser boa falante, boa leitora, escrever! era seu diferencial. Mas ela era só mais uma entre milhões, fadada a falar para o vazio que ninguém escuta. Pensou nas palavras que feriu antes delas morrerem e saírem de si. Pensou como antes elas eram a salvação de uma (auto)validação e a percepção de que elas eram para um outro a machucou. O que antes salvava agora cobrava cuidado, o mesmo que ela tinha com os outros ao pensar dolorosamente antes de falar. Como pensar doía, como aprender machucava, como falar parecia uma injeção. Primeiro a projeção de uma voz, depois a vergonha da enunciação. O que antes era refúgio, depois virou uma prova de solidão, afinal, tinham pessoas sendo ouvidas e aplaudidas (por muito menos) por aí. A perda da voz era pelas palavras feridas, essas que ela amou profundamente.
Diziam que ela deveria perguntar as palavras: O que vocês querem de mim? Querem que eu pare de tentar ser ouvida por outros e passe a sussurrar só para mim mesma?
Mas não levava a lugar nenhum. Nunca tinha levado. Andar, rasgar, tentar gritar: tudo isso poderia ser linguagem, mas, sem as palavras, ela não tinha nem força pra tentar o resto. Sabia que sussurrar só para si era mentira. Uma vez proferidas, era a um outro que estavam destinadas. Sabia que não levava a lugar nenhum porque mais do que sentir que nunca se expressou bem, sentia que ninguém a escutava direito.
Disseram: Você pode mudar de ideia, você pode ter amado as palavras e precisar se afastar delas para não morrer.
Quando ela morreu, menor do que o tamanho de um pronome, menor que um zigoto, um ser humano mudo e mal formado, encolhida pela falta de alimento que as palavras nutriam, acharam com ela um bilhete, nele, escrito com letra de forma: VONTADE.
Mas vontades nunca preencheram dicionários.
Que texto incrível, amiga! Eu também sinto oq você sente! E nessa jornada perdemos e ainda vamos perder a voz da escrita várias vezes durante a vida... Eu até diria que é algo normal até... Mas em alguma hora, a gente vai recuperando ela aos poucos, e no começo é de forma travada e com um bloqueio criativo gigantesco! Eu te admiro muito porque você trata a escrita como um ato de residência e de (Sobre) vivência. Por mais que possa achar que algo não tá bom o suficiente, de tempo ao tempo e depois continue! 🥰🥹