A obrigação é uma palavra feia, pontiaguda para muitos. No entanto, na realidade ela é apenas parte meticulosa da vida de todos nós que, em um sistema, temos relações com os outros e com coisas que exigem mais ou menos de nós. Por exemplo, se você quer aprender uma língua para sair do país no futuro, é necessário criar o hábito, se obrigar a aprender todo dia um pouco ou muito na escala de alguns dias. Isso vale para tudo: se você tem vontade de desenhar, tem que se obrigar a estudar anatomia e escala de cores. Se quer estudar escrita para ver se finalmente escreve mais e todos os dias, tem que ler sobre. Se quiser um Podcast ou canal no Youtube, tem que entender sistemas de sons de mixagem e edição.
A culpa não é minha por não conseguir atender todas essas obrigações, porque além das vontades artísticas, há as vontades pessoais que não querem nada além de um divertimento, algo aprazível no fim do dia. Tem as obrigações do lar, como uma dona de casa. As obrigações escolares, acadêmicas, amizades, afetos, família...Além disso tem as obrigações profissionais, que hoje em dia se misturam com os hobbys.
Viemos de uma geração que não queria ser como nossos pais que trabalham com o que dá. Queremos então ser aquilo que sonhamos e fazer o que gostamos. Passamos a tornar tudo que amamos nosso trabalho, portanto muitas vezes, (não todas) deixamos de amar e de tê-las como passatempo, ou prazer. Precisamos procurar outras coisas, mas mesmo as outras fazem com que as pessoas pensem que podemos e devemos lucrar, tirar utilidade disso sem parar, fazendo tudo junto, quando hobbies tem que ser apenas o relaxamento da mente do caos. Deve ser o ócio, a pausa que é reconciliatória consigo e revolucionária contra o sistema:
“A técnica temporal e de atenção multitasking (multitarefa) não representa nenhum progresso civilizatório.[...] O sujeito de desempenho concorre consigo mesmo e, sob coação destrutiva, se vê forçado constantemente a superar a si próprio. [...] A economia capitalista absolutiza a sobrevivência, ela se nutre da visão de que mais capital gera mais vida, que gera mais capacidade para viver.”
(pg.31/91/107 - Sociedade do Cansaço)
Dentro tudo isso, tento lembrar que: meu dia só tem 24 horas, como o de todos. Alguns interesses não fazem sentido com que planejo, – ficarão para outra vida, se houver uma. – não dá pra querer tudo, assim como hoje lido com o fato de que literatura é um esquema de pirâmide milenar: nunca lerei tudo que quero. Não dá pra tornar tudo obrigação ou tudo será insuportável, cansativo, não terei tempo pra nada, não farei nada para mim de fato e sim pelos objetivos. Mas, principalmente, não é minha culpa querer o mundo, todo mundo quer. Não dá pra ser perfeita em tudo, a banda de uma mulher só pode errar acordes.
Tudo bem ter a voz arranhada no Spotify abandonado com três episódios do Ana com A, que um dia, talvez, voltará. Ok desenhar mal seus bonecos cabeçudos com bochechas rosadas em um Instagram esquisito. A foto dali de cima é de um dos meus desenhos favoritos, o coração. Ok fazer colagem em um bullet journal depois de se estressar e nunca mostrar pra ninguém. Ou escrever fanfics e não terminar porque já não é mais a pessoa e as histórias já não são as mesmas.
Isso não é sobre deixar tudo pra trás, por conta do fim do mundo ou porque não precisamos de responsabilidades. Apesar do fim do mundo iminente com esse calor que nos imobiliza. Ou a ebulição global que paralisa nos tirar muitas vontades de seguir em frente em um futuro incerto. Talvez fale de novo disso, gosto do tema, para além do Análogos.
Falo sobre isso porque mesmo as obrigações cotidianas têm que ser materiais, tem que me tocar ao passo que as toco e as afeto. Hoje, desenhar e postar por likes e “gritar pra parede” não me dá nada em benefício (isso não é sobre as relações utilitaristas ou querer engajamento) no sentido de um futuro, mas mais pra frente, quem sabe? Livre de amarras por likes ou fandoms de Twitter fazendo threads sobre o que escrevo.
São lutas diárias e essa é uma das páginas daqueles dias que você vence o monstro. Bati meu tambor, guitarra, trompete, flauta e teclado, como uma boa banda de uma mulher só e venci essa amarra de querer tudo perfeito e me sentir uma falha. Tudo bem fazer tudo uma bosta às vezes, nem estou “ganhando por isso”, como quer tanto o sistema.
Quem sabe outro dia o monstro vença e eu escreva sobre, mas por enquanto estou bem com as outras Ana’s em hiatos, focando na Ana escritora e professora do futuro, que falará pros alunos que eles podem fazer muitas coisas, só não tantas assim, que eles aproveitem o que fazem, aproveitem o descanso, o não fazer nada, o existir. Até eu estou lidando com a paranoia de só existir. Mas ela é boa, eu juro.
Muitas ideias
Tenho tido muitas ideias de textos para cá. A ideia antes era postar a cada quinze dias, mas acho que farei quando me der vontade, tentando, é claro, manter a constância. Me dá vontade de escrever mesmo que eu não seja lida. Muitas vezes me estimula a ter ideias para todos os meus duzentos romances parados sem consistência. Também sei que isso faz parte do querer fazer muito e nada fazer, afinal o texto acima está pronto já faz algum tempo e só agora tive coragem, liberdade e organização para postá-lo.
Isso também me afeta no sentido de: quero postar coisas legais aqui, mas a verdade é que todo mundo que escreve e produz muito lixo antes de ter algo legal em mãos. Eu, com o julgamento crítico de um abismo de Nietzsche comigo mesma, não gosto de nada que escrevi, mas se eu pensar assim sempre, logo isso aqui seria mais uma das minhas desistências. Um deserto pessoal da antiga eu, como as fanfics, o podcast e outros. Mas também não quero publicar porcarias e me arrepender depois.
Estou planejando um conto a pedido da autora do O Jornalzinho, que é uma fusão de Clarice e Mário de Andrade, mas ainda não há certeza se ele verá a luz. Mas gostei de receber o pedido!
Também estou planejando ensaios mais críticos, para tirar finalmente a poeira da seção Anatomia, mas eles são mais elaborados, requerem mais de mim. Ultimamente todo meu pensamento crítico está sendo sugado pelos trabalhos de faculdade.
Vai que num futuro póstumo, se a Terra não colidir em si mesma, as pessoas achem esses arquivos em suas internets supersônicas e os lixos que escrevi modifiquem toda a suposta autoridade literária que tanto tento criar? Brincadeira.
No mais, os textos estão passando por uma rigorosa revisão (rigorosa até onde meus olhos míopes alcançam) e seleção. Esse mesmo me parece um bom degrau de desabafo para outros que também se sentem como a tirinha de Raphael Salimena. Acho que tudo bem ser péssimo as vezes até conseguir ser bom.
Meus e seus
Gostaria de agradecer a Ludmila da Newsletter “Meus Discos, Meus Livros Livros” por ter recomendado meu texto/página para seus leitores. A notificação chegou para mim como um presente de que a tentativa supera o algoritmo malvado. Aliás, em uma das minhas paranoias de fim do mundo, foi o texto sensível dela sobre a guerra que pegou meus cabelos encaracolados, me fazendo dar um suspiro de alívio por um tempo. Você pode ler aqui. Só repito: não somos responsáveis por tudo.
Esquema de Pirâmide descoberto pelo Umberto Eco
Muitos de vocês devem conhecer o termo Anti Biblioteca de Eco, criado por Nassim Taleb em sua obra “A lógica do Cisne-Negro”. Confesso que ainda não li o livro, mas ouvi sobre esse conceito em uma aula introdutória da literatura e esse monstro de papel volta e meia retorna a minha cabeça como um império romano. Gosto de ler desde que aprendi, com seis anos. Um dos livros que me fez querer ser escritora é um livro sobre a falta de palavras, chamado “Um Mundo sem Livros” de Adeilson Silva Salles. Ainda o tenho na caixa de memórias.
Portanto, sempre fui a leitora voraz, a criança que lia e ia contar histórias fantásticas para amigos e pais. A criança que trocava outros presentes por livros, a amante de Percy Jackson (estou ansiosa pela série) e que chorava com romances mesmo sendo nova demais para ler um.
A história da minha vida me levou até a faculdade de Letras, que é a graduação dos leitores que não querem um fim nesse esquema de pirâmide. Cada livro é o essencial exemplar da literatura Ocidental ou Oriental. O primeiro, o clássico, o que remonta a história arcaica, antiga e moderna. O que modificou a literatura, o registro que temos hoje. Não é uma crítica, apesar de ser um sumário mordaz do que vemos nas matérias.
Com isso conheci Homero, ao qual ainda não superei nem Ilíada e nem Odisseia. Com isso conheci maravilhosas tragédias gregas, como Hipólito, Agamenon e reli o Édipo Rei do ensino médio. Conheci a Aulularia, Os Cavaleiros de Aristófanes, Esopo, a Poética e a Arte Poética.
Descobri que todo leitor e estudante de literatura deve ler pelo menos uma vez na vida Crime e Castigo, Dom Quixote, a Divina Comédia. Esse último deve ser lido depois de superar Homero. Não se esqueça de Camões. De Pessoa. Não se esqueça dos russos e de como mudaram a literatura. Dos queridos acertos e erros dos românticos. Não podemos deixar de dar uma chance a Goethe, Shelley, Austen, Baudelaire, irmãs Bronte ou se aventurar pelas obscuridades de Joyce e Woolf.
E claro, como uma brasileira você deve saber de cabo a rabo Machado de Assis, conhecer a virtuosidade mística de Clarice, entender a profundidade da secura confessional de Graciliano e se enfiar nas veredas de Guimarães Rosa para entender porque somos Brasil. Não deixe de dar uma olhada em Alencar, para entender Machado, ou em Euclides da Cunha, Álvares de Azevedo, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego.
Esqueci os teóricos! Minha culpa! Para começar de algum lugar temos Bakhtin, o Lukács e mais adiante Terry Eagleton. Não se esqueça de dar uma conferida em Adorno, Antonio Candido, Rosenfeld, Jakobson, Platão! Tem mais escritor…Ah, claro, como pude esquecer? Kafka, o Umberto Eco! Bolaño, Cortázar, Jorge Luis Borges, Saramago, Neruda, Gabriel García Márquez, Cecília Meireles, Toni Morrison, Jorge Amado, Valter Hugo Mãe. Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Schwarz, um toque de Nietzsche e se quiser, uma visita a Lacan.
Não se esqueça que para ler um, se deve ler outro e para entender os dois, ler um outro.
Isso tudo me enlouqueceu no começo. Não por ser muita coisa. Não por serem todos maravilhosos à sua maneira. Mas porquê me deu medo. Porque sou finita. Porque provavelmente irei embora sem entender um pingo de Homero. Irei dessa terra sem nunca ter lido Freud. Eco estava certo ao dizer que os livros que não lemos dizem mais sobre nós do que os que lemos. Esses livros vorazes, misteriosos, gigantes assombrosos na noite, que nos encaram sabendo que venceram.
Venceram porque nunca serão lidos, porque não temos coragem. Porque o tempo nos ganha enquanto eles ficam. Ficam e serão derrotados por outros leitores, ao passo que novos livros serão seus mistérios insolucionáveis. Entre alguns, muitos dos quais compramos em saídas para livrarias, bienais, Feiras da USP. Ano após ano comprando sem ter lido o do ano anterior. Comprando um para ler depois de outro e dois para poder entender outro que quer muito ler. Foi meu caso, cheio de ficções científicas para ler, comprando Byung-Chul Han aos montes em pleno 2023 sem ter base de filosofia.
Em minha defesa, os temas e a clareza com que o ensaísta escreve são suficientes para entender o que ele quer e aí sim, se quiser, ir atrás de seus mestres. Não sei se lerei tudo, há muita coisa em jogo. Sei que não é sobre ler em quantidades, nem dar utilidade pra tanto papel na estante, mas essa brincadeira do esquema existe e ainda bem. Literatura é uma ligação eterna, um livro ligando ao outro. Basta escolher fazer disso uma amarra de correntes ou um laço que nos segura em terra firme.
Sempre tive muita aversão àquela ideia do "antes feito do que perfeito". Eu achava de uma mediocridade terrível e aí o que eu fazia? Simplesmente não fazia, por puro medo de falhar. Tem pouco tempo que passei a rever isso tudo. Ando fazendo, eu e minha banda meio desafinada, com uma única batida. Obrigada por estar aqui também. Sigamos!