Terminar de escrever é um parto para todo escritor. Mais ainda para os iniciantes. A maior parte dos novatos (e não somos todos?) nunca sabe quando finalizar um texto. Os caminhos são dois, igualmente ruins para a produtividade da escrita: largar o texto ou esticá-lo. Não gosto da palavra produtividade desde que ela foi cooptada pelos neoliberais que amam dizer que devemos ser produtivos no trabalho, porque apesar de considerar a escrita um trabalho, — hoje quase não remunerado para mim, de tão mal — ela é uma arte.
A arte está viva para além da produtividade. Está viva onde nasce vida, onde se cresce criatividade, onde nascem trocas em diálogos, vivências, onde e apenas onde já há leitura e treino. Em muitos locais, em cursos, em aulas, em tramóias, é só ouvir dizer que basta ser produtivo e a escrita estará lá. Isso não só não é bem verdade, como torna a escrita um "lixo", pois a medida que cresce em quantidade (afinal muita coisa pro capitalismo é número quantitativo) decai em qualidade, já que não foi decantado, não descansou, não foi cortado, revisado, não teve um olhar apurado ou sequer alguém que saiba a trabalheira que dá escrever por trás.
Nos meus poucos anos tendo consciência da escrita como arte, trabalho, árdua função, já percebi algumas coisas que outros demoram em fugas fáceis. São uns 5 anos de trabalho pesado, de noites viradas e prazos com revisões, apesar de eu "escrever" versinhos desde os seis anos, meu problema sempre foi mais terminar o texto do que esticá-lo.
Sei que para muitos saber quando acabar é difícil, saber quando será o ponto final, ou como alguns gostam, saber por o fim em caixa alta. Para esses, ouvir leitores betas, opiniões de amigos, deixar o texto descansar e depois fazer cortes pode ajudar. Pode até solucionar os problemas.
Mas para os escritores jardineiros, daquele termo já manjado e repetido por aí do George R. R.Martin, ou para os procrastinadores, o pesadelo é outro. Não gosto de nenhum desses termos, na verdade, me considero os dois, ou melhor: um fruto deles. Chamo isso de “o escritor medroso”. Não leve para o coração o termo se for seu caso, mas dei esse nome porque, além do medo ser algo que enfrento pela minha vida toda (e provavelmente enfrentarei), é o medo que me ampara quando não sei como terminar.
Sei que às vezes na nossa cabeça até sabemos como vai terminar, mas escrever o final, colocar em prática o fim, já é outra coisa. E dos meus seis aninhos até meus, não sei, quinze ou dezesseis, morria de medo de terminar alguma coisa. Finalizei poesias e contos que eu acreditava serem romances até descobrir o escopo da escrita real de um romance, — ainda que hoje eu ache que limitar gêneros a números de páginas é pouco moderno — mas não terminava livros, não terminava contos consistentes ou antologias poéticas.
Só que parte do ofício da escrita é finalizar a sua obra e apresentá-la aos outros. Porque a pessoa que nunca termina nada, só está escrevendo para sempre, não é bem um escritor. Estava aí um dos meus medos: terminar e ser tão ruim que eu não poderia ser chamada de escritora. Então ficar nesse meio termo entre estar escrevendo, mas nunca terminar, me dava a carteirinha honorária de escritora.
Isso passou ao longo da adolescência, ou na maior parte do tempo tento superar o fim e criar a consciência de término. Hoje mesmo sei que obras consistentes ou não, boas ou não, sou escritora. Apesar de uns dizerem que o livro só estará pronto se publicado, nas mãos de alguém, sei que ele está pronto como um manuscrito revisado em um PDF no Whatsapp do amigo.
Meu medo de terminar se substituiu por terminar de maneiras “horríveis”, sempre iguais e cíclicas, com a qual estou lidando, tanto para diferenciar aquilo que é minha assinatura do que aquilo que é clichê e arquetípico.
No entanto, outro medo se criou, porque parte da arte de escrever é renovar os medos, cada estágio da escrita tem um monstro próprio para enfrentar. O meu, atualmente, é revisar o que escrevi. Ainda vai ter um tempo para superar isso e tenho certeza que duas revisões não serão o suficiente nesse texto. Aceito conselhos. Pois bem, tenho ojeriza a olhar depois que escrevo, pois parece um cuspe do eu. Não gosto de olhar, mas são mais problemas de reflexo que precisam ser trabalhados em mim, do que problemas com o texto em si.
Chegando ao que eu queria com meu texto (eita, não acaba nunca!) vejo que além desses problemas que o leitor enfrenta, há também o risco de ser vítima de seus leitores. Não me levem a mal, agora que estão lendo também são meus leitores e, isso nem sequer é um ataque ou uma defesa, está mais para desabafo, um comentário, uma opinião pessoal.
Só que vejo hoje, não sei se pelo tempo em que vivemos da tela infinita, da Era da Informação, das séries gigantes, das sagas de livro que são esquemas de pirâmide, dos filmes intermináveis de heróis…Que não há tempo para o fim. A ânsia pela continuidade mata narrativas que se encerram em si mesmas. Estamos em um tempo (não vou culpar geração) em que é difícil consumir algo que tenha um final sólido, quer você goste ou não, quer seja bom ou não, pois isso já são outros debates. Não sei o suficiente de estudos sociológicos para entender o porquê, mas vai minha contribuição por experiência própria.
As pessoas sofrem com cancelamentos de séries, amam que elas sejam esticadas até romperem suas narrativas e serem moídas pelas críticas e rejeitam as novas sagas e oportunidades, ainda que no caso dos heróis seja um desgaste do gênero, ninguém quer ver os filmes novos porque ninguém aguenta mais filmes novos da mesma história. Elas têm medo do novo, então assistem sempre o mesmo filme, a mesma série, melhor ainda se não precisarem ter a angústia de saber que acabou faz uns dez anos e continuar vendo em looping.
Casos como Grey 's Anatomy, que a elasticidade causou uma quebra de realidade onde médicos morrem mais que pacientes e a própria protagonista da trama, a heroína saiu. Perde o significado. The Big Bang Theory causou danos irreparáveis no elenco pela demora ao terminar, enquanto Os Simpsons perdura pela tradição. Sem comentários para Stranger Things, Riverdale e Once Upon a Time. Dependendo da narrativa, até mesmo algumas temporadas de American Horror Story são para preencher a lacuna de episódios dos fãs sedentos para ver o elenco em seu terror sem fim. Para as sagas, posso citar a empobrecida Maze Runner, o esquema sem fim da saga Estilhaça-me, ou a mercadológica e apressada Divergente, que surfou rapidamente na onda de Jogos Vorazes tentando radicalizar a trama do herói de saga de distopia, não só apressando o final, como se tornando esquecível.
Também posso citar inúmeros remakes que entram na caixinha do “medo do novo”, pois contam sem tirar nem pôr a mesma história, mudando só o elenco e os anos, como o reboot que ninguém pediu de Harry Potter, que envelheceu como leite no Sol, ou o remake de Pantanal. Aliás, “remakes” corajosos são imediatamente renegados, como foi o caso de Matilda ou Karatê Kid. Enquanto todo esse omelete ocorre, ovos bons são desperdiçados, como foi o caso de Anne de Green Gables que tinha uma série de mais de oito livros da Lucy Maud Montgomery para adaptar (recomendo!) cancelada pela Netflix por ser de uma empresa terceirizada e não dar tanto lucro e de Bojack Horseman, que teve o término adiantado pelo mesmo motivo.
No caso de contos, saindo da grande estante de produções audiovisuais, está o meu caso. O brasileiro não só não consome tantos contos, um resultado de não consumir muita literatura, como ao consumir, anseia por mais. Deseja mais. Deseja mais páginas, deseja que o autor discorra sobre tal personagem. Que arredonde as arestas pontiagudas do gênero, que aumente até se tornar um romance com tudo altamente explicado. Isso tudo é sintomático da ânsia da produtividade, de querer o útil dentro da arte, de fazer do que se consome o mais quantitativo possível dentro do escopo de seus gostos. De querer limitar uma narrativa ao que o Indivíduo deseja.
Sei disso e discorro agora, porque lancei um conto na Amazon, o Como se vota em Hugo Pirinha em 2022. Foi um conto que larguei em 2018, na época das eleições e não terminei até ano passado, por diversos motivos dos quais falo no próprio e-book. Deixando de vender meu peixe aqui, o que eu queria dizer é que, sei que livros no capitalismo tardio, nessa era de influencers não venderia por si. Contos não vendem muito no Brasil, por e-book ainda?
O Brasil sendo um país com pouco poder de compra, mal tem acesso a celulares, como as pessoas saberiam o que são Kindles? Ou então, como saberiam que dá pra ler o e-book em um app no celular? Como as pessoas, no Brasil, terão acesso para além do monopólio da Amazon? Se os autores são praticamente escravos do poderio da empresa e de seus royalties baixíssimos por página lida?
Por fim, na bolha de contos virtuais, aquilo que faz sucesso é o que tem uma boa injeção de dinheiro, publis nas redes sociais infinitas e que seja (de preferência) para uma faixa etária apenas e de um gênero popular: o romance. E aí não falo do romance como conhecemos, mas da estrutura romântica de casais literários como base para se ler qualquer história.
Não estou criticando, amo histórias com bons romances, foi uma das coisas que me fez virar escritora. Amar bons casais, bons beijos, boas cenas de sexo escritas (esse debate fica para outro texto), surtar ao ver a jornada e brigas do casal. Só não acho que ler contos pra ter a dose de dopamina instantânea pela felicidade de um casal que em partes pode ser reflexo do desejo do Eu, seja o único tipo de texto possível no meio virtual pras faixas etárias e públicos. Esse tema do reflexo do eu como busca na literatura tem me martelado, mas fica para outro dia. O que acho é que os públicos e idades são imensos, só que o algoritmo não é justo.
Dentro disso, Hugo Pirinha se perdeu na multidão de textos com capas mais bonitas e casais interessantes, com uma trama para todas as idades engolida. O investimento que fiz para publicar esse, do qual tenho muito orgulho e nenhum trauma, diferentemente de outras coisas que escrevi, não foi pago. Não só, como tive que participar de uma trend que aconteceu no Twitter, o #ExplodaSeuKindle, para ver se o conto alcançaria publicamente mais pessoas, mesmo que eu recebesse centavos por isso. Amei participar, pela divulgação, por achar outros autores. Foi bonito. Deu certo! Mais de 1000 pessoas baixaram e de semanas em semanas, aos pouquinhos, as avaliações aumentam.
Sei que critiquei quantidade acima de qualidade, mas só de ter as avaliações em estrelinhas ali, para uma autora independente, já é muito. No entanto, as pessoas pouco escrevem na resenha da Amazon, acho que vergonha. Nas resenhas do Skoob, que chegaram até mim através dos meus poderes de stalker, a história é outra. Sei que aquele aplicativo é um espaço para leitores e jamais iria rebater, brigar ou criticar quem crítica meu trabalho em lugar algum. Mas não pude deixar de ir atrás de ler, seja para afagar meus medos e inseguranças ou para amaciar o ego. Queria saber o que achavam. Amei tudo que escreveram, inclusive críticas.
Só que algo me tocou. Me tocou a maioria das pessoas diminuir as notas das estrelas por querer mais. Por não querer fim. Ou pelo menos é o que parece ao ler as críticas. Há ânsia. Essa ânsia de ter mais do Hugo, de uma maneira que a narrativa e o meu propósito textual jamais me permitiria. Não falo mais pois é spoiler, mas o Hugo não pode fazer o que as pessoas desejam dele. Está aí o ponto chave de entender porque o texto tenta representar o Brasil, porque ele é uma fuga do que tivemos por quatro anos. A ânsia na literatura é a fuga, é a esperança, é o sonho.
É triste podar ele como autora ao colocar o ponto final, porque sei que muitos leem para fugir do mundo real, ao passo que literatura é o mundo real. Como escritora podamos diversas vezes o leitor: ao escrever, ao terminar a história, ao não dar mais de algo que ele deseja, uma continuação, uma saga. Entendo que a ânsia pode ser sintomático da sociedade, mas talvez essa coragem de dar a cara tapa e tirar estrelas de um livro que você gostou por desejar ler mais, seja mais um elogio do que bem uma crítica. Afinal, são estrelinhas virtuais, dessas de mentira, como as que ganhamos do professor na escola por irmos bem na tarefa. São símbolos do nosso trabalho, mas não são ele materialmente. Mas ver a ferida de mágoa na pessoa, da ansiedade do futuro não escrito, da imaginação de cenários, algo que produz ideias, textos, isso é muito mais material para o escritor. Para continuar escrevendo, mas principalmente, dando fim aos seus escritos.
A pulsão de fim é o gerador de outras coisas e, acho que devemos transformar a ânsia pela continuidade na coragem de terminar e tentar o outro. Porque apesar do medo do desconhecido, o fim é parte crucial da existência, algo que teremos que encarar cedo ou tarde. Fazer isso na arte é reconhecer a tudo como finito e não há feiura nisso.
Antes de ir…
Vendi meu peixe delicadamente, com um subtexto, mas a verdade é que eu gosto de panfletar esse conto para todos deliberadamente, pois considero o pequeno protagonista meu bebê. Adoraria saber outras opiniões sobre ele: na Amazon, no Skoob ou mesmo aqui. Taquem o pau. Me digam se o fim dá sede. Ou se estou errada nele e no meu texto inteiro.
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Sinopse:
"Gente feliz e bonitinha, vota em Hugo Pirinha!"
Os Pirinha da Silva Melo são uma comum família brasileira de classe média, exceto por uma singela regra silenciosa: durante os almoços semanais onde a parentaiada toda se reúne, além de não ser permitido falar da trindade polêmica — futebol, religião e política — também não é permitido contar uma história mais velha do que o mais jovem da mesa. Porém, o Pirinha caçula, Hugo, é um garoto "espevitado" e curioso, bem daquele jeitinho que tanto irrita os mais velhos. Pode uma criança em tais circunstâncias descobrir o significado de palavras difíceis como "deputaços", ou pior ainda, pode essa criança crescer para se tornar um político?
Neste conto de Ana Gabriela Pacheco, o clima tenso que envolve as eleições brasileiras de 2022 ganha uma nova faceta: o ponto de vista das famílias brasileiras que de tradicionais não tem nada. O ilustre narrador, Hugo Pirinha, nos questiona com tanta simplicidade ao ponto de notarmos nossas confusões e medos; o Brasil voltará a aproveitar seus almoços de domingo sem ter de se preocupar com os preços do mercado ou com as perseguições de Jair Messias Bolsonaro? Talvez a resposta caiba apenas às crianças.
"Como se vota em Hugo Pirinha" é um conto com muitas inspirações, mas não valeria a pena citar 'A Grande Família', os núcleos 'pobres' das novelas da Globo (onde a imagem da família é o principal), não valeria a pena nem citar o esforço de imaginar um Macunaíma escrito por Lispector, em algum universo paralelo de brasileiridade — nenhuma dessas referências vale a pena, porque a maior fonte para a criação dos Pirinha da Silva Melo são todas essas famílias brasileiras, bagunçadas, malucas e, muitas vezes, nada unidas".
O bom final é confortante pra mim: não descanço até enxergar um ponto final. O temido e ansiado ponto final. Diz o sábio que o final das coisas é mais importante do que seu início. E esse texto me lembrou dessa beleza: a completude é boa, e se ficamos com um gostinho de quero mais, é por que foi bom no processo.